Por Camilla Ayala Felisberto Silva e Fernanda Dixo
Você sabe o que é sharenting? Já ouviu esse termo?
O termo sharenting apareceu em um artigo no qual o escritor e publicitário James Bridle criticava a superexposição dos filhos pelos pais nas mídias sociais. É uma expressão da língua inglesa que combina as palavras share (compartilhar) e parenting (parentalidade).
A parentalidade é o conjunto de responsabilidade e funções que normalmente é atribuída aos pais, pois em regra são eles os responsáveis pela criação de seus filhos. Envolve aspectos físicos, emocionais, materiais, sociais, educacionais, dentre outros que, juntos, visam garantir o crescimento saudável das crianças. É uma responsabilidade compartilhada entre os pais e pode ser exercida também pelas pessoas que assumem a responsabilidade pela criação das crianças.
Não há dúvidas de que a parentalidade é uma jornada contínua e, acima de tudo, desafiadora, que coloca os pais em um lugar de aprendizagem constante, a fim de lidar com as diferentes fases do desenvolvimento infantil.
Nesse sentido, desde a criação das mídias sociais, surgiu uma nova preocupação e ponto de atenção que os pais devem estar conscientes e alertas, qual seja, os cuidados no compartilhamento de informações na internet, ainda mais considerando serem informações de crianças, pois podem ter sérios e graves impactos na segurança e privacidade delas.
É comum ver pais postando fotos e vídeos de seus filhos no Facebook, Instagram e, mais recentemente, no Tik Tok. O problema não está em postar uma foto ocasionalmente, no dia do aniversário do(a) filho(a) ou de uma conquista, mas reside no compartilhamento excessivo de informações e imagens dos filhos na internet, ou seja, praticar o sharenting, inclusive almejando algum retorno financeiro através disso, em alguns casos.
Alguns de vocês podem pensar que postar fotos e informações sobre seus filhos não traz nenhum problema, mas há uma série de riscos implícitos que precisam ser considerados e sopesados.
O primeiro deles é que a exposição excessiva pode ter implicações negativas na privacidade e segurança das crianças, já que as informações colocadas na internet se tornam acessíveis por qualquer pessoa, ou seja, perde-se o controle de quem terá acesso àquela informação.
Ou seja, uma vez postado, perde-se o controle sobre o caminho que a informação e imagem fará, sendo importante lembrar que as imagens compartilhadas na internet podem ser vistas e acessadas por pessoas de todo o mundo, o que significa que as fotos dos filhos podem permanecer online por anos ou mesmo décadas.
Dessa forma, não se tendo controle do destino e forma de uso da imagem e informação, há também a possibilidade de as imagens serem usadas para fins maliciosos, como a criação de perfis falsos ou até mesmo para a exploração sexual de menores.
Além disso, o compartilhamento excessivo de imagens dos filhos pode afetar negativamente o bem-estar emocional deles. As crianças podem se sentir expostas e constrangidas por terem sua vida privada compartilhada publicamente sem seu consentimento. Para mais, como na maioria das vezes os pais compartilham apenas as melhores fotos e os melhores momentos, pode-se criar uma expectativa de perfeição e felicidade que não é realista, gerando um impacto até mesmo na autoestima das crianças.
A fim de exemplificar o assunto em questão, recordamos o caso “Bel para meninas”, de 2020, em que um canal do YouTube divulgou vídeos sobre a vida da menina Bel. A mãe de Bel, que gerenciava o canal, foi acusada pelo público de maltratar e explorar psicologicamente a própria filha, a fim de ganhar repercussão na internet. A criança era submetida a desafios considerados maldosos e constrangedores, como um em que a mãe quebra um ovo na cabeça da filha, que também contavam com repreensões por parte da genitora de maneira desmedida. O caso ganhou importância, tendo sido criada a hashtag #SalvemBelParaMeninas e, após muitas críticas, os vídeos foram delatados. Os pais foram alvos de investigação pelo Ministério Público sob o fundamento do artigo 232 do ECA.[1]
Alguns casos que não envolvem atos expressos de possíveis violências contra a criança, mas que merecem atenção, são os perfis em redes sociais de filhos de celebridades que, até mesmo antes da criança nascer, já são criados para compartilhar toda a trajetória da gestação e, posteriormente, a vida do menor diariamente. Um exemplo disso é o perfil “jake.com”, do filho dos influenciadores digitais Pyong Lee e Sammy, que, antes mesmo do nascimento, já era seguido por mais de 90 mil pessoas e hoje ultrapassa os 2 milhões de seguidores. A vida da criança vem sendo exposta desde o seu nascimento sem que ela tenha discernimento para concordar ou discordar do compartilhamento de sua vida. Logo, caso no futuro ele não se sinta confortável com toda essa violação da sua imagem, dificilmente conseguirá reverter esse quadro ante a velocidade e a facilidade de compartilhamento pela internet.
A prática do sharenting, portanto, é algo que já faz parte da nossa realidade social desde o aumento expressivo da utilização da internet pela população e a popularização das mídias sociais. Porém, resta notório o quanto esse fenômeno tem chamado a atenção, principalmente no que diz respeito à relação entre autoridade parental, direitos personalíssimos dos filhos, liberdade de expressão dos pais, segurança de dados pessoais da criança e do adolescente e responsabilidade civil.
No Brasil, não há nenhuma norma jurídica que discipline especificamente sobre essa problemática, mas existem diplomas normativos capazes de suprir essa ausência e impedir a inércia de órgãos públicos e da sociedade civil em respeito, principalmente, à proteção da criança e do adolescente, que se encontra, inclusive, expresso na Constituição da República.[2] As regras inseridas no Marco Civil da Internet e na Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, da mesma forma, reconhecem o respeito à dignidade humana, à privacidade e intimidade de dados pessoais e à personalidade, a qualquer pessoa, indistintamente. O ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), também não proíbe expressamente o sharenting, mas consagra direitos e deveres que, notadamente, vão de encontro a todo esse compartilhamento exagerado de fotos e vídeos de menores de idade em ambientes virtuais.
O que se questiona no momento é: essa responsabilidade deve ser atribuída exclusivamente aos pais (ou àqueles que exercem a parentalidade sobre a criança e o adolescente), ou essa deve ser solidária, incluindo também os fornecedores de produtos e plataformas digitais que permitem essa prática? No que diz respeito aos pais ou representantes legais, todo conjunto normativo explicitado é capaz de fundamentar ações que tenham como objetivo a interrupção das atividades abusivas de compartilhamento, bloqueio de recursos obtidos pela exposição dos menores, podendo chegar até mesmo à suspensão do exercício do poder familiar.
Já no que concerne aos fornecedores e às plataformas digitais, também é possível acionar os órgãos públicos competentes, bem como entidades civis, a fim de obter medidas judiciais em face das empresas que acabam por se aproveitar dessa exploração abusiva de menores para se promover. Tudo isso pode ser feito através dos Conselhos Tutelares ou dos Ministérios Públicos responsáveis pela área da Infância e Juventude.
Percebemos que a prática de sharenting estabelece um conflito entre garantias amparadas pela Constituição, mas nem por isso está completamente alheia à abrangência legal que atualmente rege nosso país. O hábito de pais ou responsáveis legais compartilharem momentos de seus filhos já faz parte do cotidiano de muitas famílias e do interesse de boa parte da população. A questão é que essa prática pode trazer consigo sérias consequências e complicações a longo prazo, levantando uma discussão pertinente sobre os limites desse ato e a proteção da privacidade das crianças e adolescentes.
Logo, os próprios pais e responsáveis, como adultos e detentores do poder de compartilhamento da vida dos filhos, devem, no mínimo, agir com cautela e preocupação. As organizações públicas podem, por exemplo, executar um trabalho de orientação, fazendo com que aqueles reflitam sobre questionamentos como: compensa deixar o conteúdo totalmente público? Será que meu filho(a) achará isso legal quando estiver mais velho? Qual o melhor site ou plataforma digital pode ser melhor? Com que objetivo eu escolhi compartilhar? Será que estou exagerando na exposição dos detalhes da intimidade da minha criança?
Assim, há quem diga que a solução seja a vedação total do sharenting, assim como há quem defenda que essa prática é produto da liberdade de expressão e do direito dos pais sobre seus filhos. Entretanto, o que deve ser considerado, acima de tudo, é o respeito e a observância dos direitos da criança e do adolescente, responsabilizando civil e até criminalmente qualquer abuso que viole ou cause danos à integridade física e psíquica do menor.
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[1] Submeter criança ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigilância a vexame ou constrangimento: Pena – detenção de seis meses a dois anos.
[2] Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (Redação dada Pela Emenda Constitucional nº 65, de 2010)
Referências:
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm.
WANDERLEY, Ed. MP é acionado após público denunciar mãe youtuber do canal ‘Bel para meninas’. 21 de maio de 2020. Jornal Estado de Minas. Disponível em: https://www.em.com.br/app/noticia/nacional/2020/05/21/interna_nacional,1149452/mp-acionado-publico-denunciar-mae-youtuber-canal-bel-para-meninas.shtml.
ROCHA, Carlos. BBB20: antes de nascer, filho de Pyong Lee tem 90 mil seguidores. 2020. Disponível em: –https://www.portalt5.com.br/noticias/diversao/televisao/2020/1/291229-bbb20-antes-de-nascer-filho-de- pyong-lee-tem-90-mil-seguidores. Acesso em: 23 set. 2020.
FERREIRA, Lucia Maria Teixeira Ferreira, Revista do Ministério Público do Rio de Janeiro, n. 78, p. 165-183
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