Por Luciana Bach e Thiago Espírito Santo
Devido aos grandes avanços tecnológicos, a inteligência artificial (IA) vem se popularizando e, cada vez mais, pesquisas e tecnologias têm sido desenvolvidas fazendo uso da mesma. Hoje é notoriamente reconhecido o emprego da IA em diversos campos de aplicação do cotidiano, tais como mercado financeiro, indústria, agricultura, transporte e entretenimento.
De acordo com o INPI (Instituto Nacional da Propriedade Industrial), a definição de IA tem evoluído ao longo dos anos, mas basicamente se refere a sistemas ou máquinas que imitam a inteligência humana para executar tarefas e que podem se aprimorar iterativamente com base nas informações que coletam, num processo de auto otimização, sem a necessidade do intermédio da atividade humana para configurá-la. Isso acontece por meio da interligação de milhões de dados e do reconhecimento de padrões, alcançando assim processos muito próximos da perfeição. Desta forma, as falhas decorrentes da atuação humana, influenciadas por fatores externos, são praticamente nulas com a utilização de IA.
Inicialmente, dividia-se o campo da IA em dois: “baseado em regras” e “baseado em redes neurais“. O primeiro ensinava computadores a pensar com base em regras lógicas (IF/Then). Já o segundo, pretendia imitar a arquitetura das redes dos neurônios biológicos — recebendo e transmitindo informações (daí a origem de seu nome).
A partir de 2012 as redes neurais começaram a se destacar na forma de “deep learning” e o enfoque deste tipo de IA destinou-se a inúmeras aplicações tais como decifrar a fala humana, traduzir documentos, reconhecer imagens, prever comportamento de consumidores, identificar fraudes e dirigir carros autônomos. Nesse cenário destacam-se: Siri (da Apple), Alexa (da Amazon), Cortana (da Microsoft) e o Google Assistant (da Google).
Dentre as aplicações citadas e tendo em vista suas funcionalidades, a direção de carros autônomos é mais complexa, uma vez que essa plataforma precisa estar conectada a vários sensores do próprio veículo, além do GPS e uma análise do tráfego em si, considerando semáforos, possíveis obstáculos e outros automóveis. Apesar de toda a complexidade envolvida, existem protótipos e até mesmo alguns modelos autônomos sendo comercializados que prospectam essa realidade, e agora, os esforços se concentram em buscar meios para tornar essa tecnologia acessível para toda a população em um futuro próximo.
A realidade é que nas duas últimas décadas ocorreu uma explosão de tecnologias que alteraram completamente a forma de viver em um mundo digital interconectado. A forma de negociar, inovar, produzir e criar foi diretamente impactada e cresce de forma exponencial.
Segundo informações disponibilizadas no site da Wipo, embora a IA seja atualmente a tecnologia nova mais prolífica em termos de número de pedidos de patentes e patentes concedidas, estima-se que a Internet das Coisas (IoT) seja a maior em termos de tamanho de mercado, sendo seguida por grandes tecnologias de dados, robótica, impressão 3D e a quinta geração de serviços móveis (5G).
Inteligência artificial no INPI
Um estudo intitulado Inteligência Artificial em Máquinas e Equipamentos, elaborado pelo Núcleo de Inteligência em Propriedade Industrial, em parceria com a Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial e o Ministério da Economia, em abril de 2022, revelou que o número de depósitos de máquinas e equipamentos com IA no INPI vem apresentando crescimento exponencial desde 2009 (ao analisar dados da amostra geral) e um crescimento mais acentuado a partir de 2016 (ao considerar apenas depósitos de residentes).
De acordo com o estudo, a concentração de pedidos de patentes por país depositante (origem da tecnologia) se dá da seguinte forma: Estados Unidos (2.181 casos); Brasil (576); Japão (563); França (276); Alemanha – (225); Holanda (222); Suécia (217); China (155); Suíça (116) e Inglaterra (105).
Observa-se que, embora exista uma diferença substancial em relação aos Estados Unidos, o Brasil encontra-se em uma posição de destaque frente a outros países de grande relevância no cenário mundial.
Ainda de acordo com os dados obtidos no estudo, foi feito um levantamento para detectar os principais depositantes de pedidos de patentes relacionadas à IA embarcada com o objetivo de identificar se estão concentrados em um grupo restrito ou distribuídos. Dentre os principais depositantes, estão: Nissan (248 casos); Microsoft (238); Qualcomm (152); Scania (129); Boeing (124) e Philips (114). Nota-se a predominância de empresas relacionadas à área de transporte.
De acordo com o estudo Inteligência Artificial em Máquinas e Equipamentos, 91% de toda a amostra de pedidos relacionados à IA refere-se a pedidos de patente vinculados a algum tipo de máquina ou equipamento.
O estudo revelou ainda que as cinco principais aplicações funcionais de IA identificadas nas máquinas e equipamentos são: Visão computacional (3.223), Método de controle (546), Inteligência artificial distribuída (312), Processamento da fala (75) e Processamento da linguagem natural (74).
Por fim, observa-se que, diferentemente dos depositantes na amostra geral que são em sua maioria empresas, os depositantes residentes destacam-se por uma forte presença das universidades e centros de pesquisa. Tal fato revela uma boa oportunidade para empresas interessadas em firmar acordos de transferência de tecnologia ou no desenvolvimento conjunto com estas instituições.
E como proteger uma inovação que utiliza IA no Brasil? Aqui, uma invenção que utiliza IA é delineada pelas Diretrizes de invenções implementadas por computador (IIC) — INPI PR no 411/2020 — que estabelece que: “técnicas de inteligência artificial (IA), incluindo ferramentas de aprendizado de máquina e aprendizado profundo, entre outras, quando aplicadas à solução de problemas técnicos, podem ser consideradas uma invenção“.
Ainda, assim como qualquer pedido de patente, além de atender aos requisitos de patenteabilidade estabelecidos no artigo 8 da LPI, o pedido deve atender também ao requisito de suficiência descritiva, ou seja, a descrição da invenção deve ser suficientemente clara e precisa para que um técnico no assunto consiga reproduzi-la.
Portanto, o problema técnico a ser solucionado pela invenção deve estar explícito no relatório descritivo, assim como as variáveis de entrada empregadas pelo sistema e a forma com que este sistema irá manipulá-las para solucionar o problema proposto.
Salienta-se que existe o impedimento da proteção patentária quando a IA suporta a aplicação em métodos que não podem ser considerados invenção, conforme estabelecido no Artigo 10 da LPI, tais como métodos operatórios ou cirúrgicos ou métodos comerciais, contábeis ou financeiros.
E as invenções geradas por inteligência artificial? Em uma notícia publicada em 2022 no site do INPI, a Procuradoria Federal Especializada do instituto se manifestou no sentido da impossibilidade de indicação ou de nomeação de inteligência artificial como inventor em um pedido de patente depositado no Brasil, com base no disposto no artigo 6 da LPI (que estabelece que o inventor é referido como pessoa), na Convenção da União de Paris e no Acordo Trips, segundo parecer nº 00024/2022/CGPI/PFE-Inpi/PGF/AGU.
Assim, o pedido de patente de invenção BR112021008931-4 (WO 2020/079499), depositado sob autoria de uma inteligência artificial denominada “Dabus” foi retirado na fase nacional brasileira.
Salienta-se ainda que existe um projeto de lei PL 21/2020¹, conhecido como Marco Legal da Inteligência Artificial, elaborado pelo deputado Eduardo Bismarck, que visa estabelecer regras, princípios e diretrizes que deverão ser seguidos pelo poder público, empresas, entidades diversas e pessoas físicas para o desenvolvimento e aplicação de inteligência artificial no Brasil.
O texto, que aguarda apreciação pela Câmara dos Deputados, estabelece que o uso da IA terá como fundamento o respeito aos direitos humanos, à dignidade da pessoa humana e aos valores democráticos; a igualdade, a não discriminação, a pluralidade, a livre iniciativa e a privacidade de dados, entre outros pontos. Para isto, o texto detalha uma série de direitos e deveres dos chamados agentes de IA, que podem ser agentes de desenvolvimento ou agentes de operação da IA, bem como a criação de um relatório de impacto de IA, a ser elaborado por estes agentes, descrevendo a tecnologia, incluindo medidas de gerenciamento e contenção de riscos.
Inteligência artificial no mundo
Na Europa, assim como no Brasil, o número de pedidos de patente relacionados à IA tem crescido exponencialmente desde 2012 no Escritório de Patentes Europeu (EPO).
A legislação patentária europeia possui muitas similaridades com a brasileira, tais como a avaliação dos critérios de novidade e atividade inventiva da invenção, bem como a exclusão da patenteabilidade de determinadas matérias, como descobertas, teorias científicas, métodos matemáticos, criações estéticas, esquemas, regras e métodos para realizar atos mentais, jogos ou negócios, programas de computador em si e apresentação de informações.
Com relação ao exame de pedidos envolvendo IA no EPO, foi proferida uma decisão (T 161/18) da divisão de recursos que indeferiu um método para avaliar a saída cardíaca da pressão sanguínea com base em uma rede neural artificial com valores de peso determinados por aprendizagem. Inicialmente, a Divisão de Exame considerou que o pedido não atendia ao requisito de atividade inventiva. Por sua vez, a instância de recurso manteve o indeferimento, porém por razões distintas. Na fase recursal, considerou-se que o pedido não possuía suficiência descritiva em relação aos dados de entrada utilizados para o treinamento da rede neural, impossibilitando que uma pessoa versada na técnica reproduzisse a invenção. E, uma vez que a pessoa versada na técnica não conseguisse implementar a invenção, o efeito técnico gerado pela rede neural reivindicada não contribuiria para a atividade inventiva.
Destaca-se, ainda, que a pessoa versada na técnica deve ser entendida como sendo dotada de meios e capacidade para trabalho e experimentação de rotina. Além disso, a avaliação de pedidos de patente com complexidade mista pode exigir experiência em vários campos, como por exemplo, um especialista em aprendizado de máquina e um engenheiro aeroespacial, formando assim um “time versado na técnica”.
O entendimento dos países signatários da Convenção sobre a Patente Europeia (EPC) é de que seu sistema de patentes é robusto o suficiente para tratar os desenvolvimentos técnicos no campo de IA. Com relação à autoria, o entendimento é de que o inventor é a pessoa que criou a invenção por sua própria atividade criativa.
Nos Estados Unidos, assim como ocorre na Europa e no Brasil, a quantidade de pedidos de patentes relacionados com IA cresce exponencialmente nos Estados Unidos.
Nota-se um aumento significativo a partir de 2002 devido às alterações realizadas pelo American Inventors Protection Act (AIPA) no fim de 1999 e seu período de implementação.
O principal tribunal de patentes dos EUA confirmou ² em 05 agosto de 2022 que a inteligência artificial (IA) não é considerada um “indivíduo” de acordo com a Lei de Patentes Norte-americana e, portanto, a IA não pode ser nomeada como inventora de uma patente.
De acordo com o Escritório de Patentes Norte-Americano (USPTO), os regulamentos atuais de estatutos, jurisprudência e Patentes limitam como inventor, um ser humano e impedem uma interpretação ampla que englobaria uma máquina de IA.
Observa-se, então, que a decisão do Circuito Federal Americano só reforça o que foi decidido em outras jurisdições estrangeiras. A Europa, o Reino Unido e a Austrália tomaram uma posição semelhante sobre a IA como inventor. Já a África do Sul — a única jurisdição na qual a patente foi concedida à Dabus — não revisa substantivamente os pedidos de patentes nem realiza um exame de mérito, logo, acredita-se que essa questão não tenha sido suficientemente debatida naquele país.
Assim, é visível que existe uma concordância mundial com relação ao fato de que a IA não pode ser considerada como inventora de um pedido de patente. Entretanto, com a rápida evolução da IA experimentada pelo mundo, uma revisão e posteriores adaptações das ações legislativas serão necessárias para atualizar as leis vigentes que regem as patentes neste sentido.
Esse é o desafio a ser enfrentado: conciliar o avanço tecnológico de forma confiável e consciente às necessidades humanas sem realçar as desigualdades existentes.
Escritório Aliado: Montaury Pimenta, Machado & Vieira de Mello para ConJur