Por Bruno Ventura, Francisco Giardina e Roberta Roenick
Com a publicação, no último dia 5, da Lei Complementar nº 190 (LC 190), temos a inauguração de mais um capítulo da cobrança do diferencial de alíquota (Difal) do ICMS exigido pelos estados na entrada de mercadorias destinadas a não contribuintes.
A celeuma teve início com a edição da Emenda Constitucional nº 87/2015 (EC 87), cujo principal objetivo era evitar a guerra fiscal entre os estados em razão do crescimento das vendas por e-commerce. Previu-se, então, a cobrança de Difal, transferindo parte do ICMS do estado de origem da mercadoria para o estado de destino.
Considerando a inovação constitucional da EC 87, e diante da ausência de lei complementar disciplinando os contornos gerais para a cobrança, os estados agiram, por meio do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz), com a edição do Convênio nº 93/2015 (Convênio 93/15), que estabeleceu procedimentos a serem adotados nas operações que destinem bens a consumidor final não contribuinte do ICMS localizado em outra unidade federada.
Com o início da produção de efeitos do Convênio 93/15 já no exercício de 2016, muitos foram os estados que publicaram leis locais prevendo a cobrança do Difal quanto às operações iniciadas em outras unidades e destinadas a consumidores finais não contribuintes do imposto localizados em seus territórios.
As cláusulas do Convênio 93/15 foram questionadas por meio da ADI 5.469 (relator ministro Dias Toffoli), cujo julgamento foi concluído pelo Supremo Tribunal Federal em fevereiro de 2021, com a fixação da seguinte tese de repercussão geral: “A cobrança do diferencial de alíquota alusiva ao ICMS, conforme introduzido pela emenda EC 87/2015, pressupõe a edição de lei complementar veiculando normas gerais” (Tema 1.093).
Para chegar a essa conclusão, os ministros reiteraram a necessidade de lei complementar versando sobre os elementos essenciais do tributo, notadamente definições quanto a contribuinte, base de cálculo/alíquota e local da operação.
Naquela oportunidade, o STF modulou os efeitos da declaração de inconstitucionalidade das cláusulas do Convênio 93/15 para o exercício financeiro seguinte à conclusão do julgamento, isto é, para o primeiro dia do exercício financeiro de 2022, julgando tratar-se de medida necessária para evitar insegurança jurídica em razão da ausência de norma que se criaria.
Havia muita expectativa dos contribuintes com relação à edição da referida lei complementar no apagar das luzes de 2021, mas a LC 190 somente foi publicada nos primeiros dias de 2022, passando a regulamentar a cobrança do Difal de ICMS nas operações e prestações interestaduais destinadas a consumidor final não contribuinte do imposto.
Afora discussões no que diz respeito à necessária observância dos princípios da anterioridade anual e nonagesimal, que não serão objeto do presente artigo, mas merecem a devida atenção dos operadores do Direito, com a novel legislação emerge relevante discussão quanto à validade das leis estaduais editadas ainda sob a vigência do Convênio 93/15.
A questão quanto à denominada “constitucionalização superveniente” das leis locais não é inédita e foi analisada recentemente pelo Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento da cobrança do ICMS nas importações realizadas por contribuintes não habituais.
Com efeito, ao analisar a constitucionalidade da incidência do ICMS nas importações por contribuintes não habituais (Tema 171), o plenário da corte definiu que a cobrança do tributo pelos estados deveria obedecer o fluxo de positivação previsto pelo constituinte, isto é, a emenda constitucional deveria vir seguida da edição de lei complementar contendo normas gerais sobre a nova hipótese de incidência e, somente então, poderia ser disciplinada pelos estados por meio de legislação local para exercício da nova competência tributária.
O voto-vista proferido pelo ministro Dias Toffoli, inclusive, ponderou que as normas estaduais editadas antes da edição da LC 114, na hipótese, não poderiam ser aproveitadas porque tinham fundamento de validade na Lei Kandir, que não regulava as situações objeto de ampliação da hipótese de incidência do imposto, restando afastada a “constitucionalização superveniente” dessas normas.
Com base nesses fundamentos, ao analisar o Tema 171, o plenário expressamente consignou que, para ser constitucionalmente válida, a cobrança deveria estar lastreada em lei posterior à EC 33 e à LC 114.
Anos depois, a 2ª Turma analisou a mesma matéria e, a partir de voto do ministro Gilmar Mendes, fundado em aspectos como o desfalque nas contas estaduais, passou a entender que a lei complementar seria apenas uma condição de eficácia das normas estaduais publicadas antes de sua vigência. Assim, o entendimento do plenário não foi aplicado pela turma, inaugurando precedente no sentido de que as leis estaduais anteriores à lei complementar não seriam inconstitucionais, mas apenas teriam a eficácia suspensa até o advento da norma geral nacional.
Mais recentemente, considerando que no julgamento do Tema 171 não houve debate acerca da questão — afirmação que não condiz com o acórdão de julgamento do Tema 171 —, o Plenário analisou novamente a questão nos autos do RE 1221330 e, em apertado placar de 5 votos a 6, prevaleceu o entendimento da 2ª Turma, restando assentado tratar-se de questão afeta ao plano da eficácia e não da validade das normas estaduais.
Com a edição da LC 190, no entanto, o tema volta a gerar discussões e tem potencial para obter nova análise por parte do STF, uma vez que a mera reiteração das razões utilizadas no julgamento do RE 1.221.330 seria insuficiente para solucionar o imbróglio.
A questão do Difal previsto na LC 190 parece fornecer novos contornos à análise, uma vez que a própria corte definiu, ao julgar o Tema 1093, que a EC 87 previu nova relação jurídico-tributária ao criar nova hipótese de incidência do tributo, sendo necessária a edição de lei complementar regulando os aspectos essenciais da nova matriz de incidência, haja vista que a Lei Kandir não era suficiente para fundamentar a cobrança.
O julgamento, concluído ainda em 2021, portanto, seguiu a linha da existência de um fluxo de positivação que deveria ser observado pelos entes. A decisão, inclusive, veio acompanhada pela modulação de efeitos justamente buscando evitar a perda de arrecadação dos estados, considerando a pontuada necessidade de lei complementar veiculadora de normas gerais.
Soaria incoerente que, a despeito de sua recente decisão, a corte entendesse pela convalidação de normas estaduais publicadas antes da LC 190, posto que não teriam qualquer fundamento de validade, como asseverado no julgamento do Tema 1.093.
A discussão também é permeada por aspectos federativos que não podem ser ignorados. De fato, a lei complementar veiculadora de normas gerais é também uma forma de assegurar estabilidade, previsibilidade e integração às cobranças a serem efetuadas pelos 26 estados mais o Distrito Federal, elemento que ganha ainda maior peso ao lembrarmos que estamos diante de uma nova hipótese de incidência criada para evitar guerra fiscal entre os estados.
De fato, admitir a “constitucionalização superveniente” da legislação local editada antes do advento da LC 190 significaria, em última medida, negar efeitos práticos à decisão da própria corte, no sentido da imprescindibilidade de lei complementar para a fixação de aspectos da cobrança do Difal de ICMS.
Por outro lado, se considerada a LC 190 como mera condição de eficácia das leis estaduais, será necessário definir qual das normas deu início à contagem de prazos para fins de anterioridade anual e noventena, elementos que poderiam até postergar a incidência do Difal para janeiro de 2023.
Considerando todos os aspectos que permeiam a edição da LC 190, parece inevitável que a questão quanto à validade das normas estaduais editadas antes de sua publicação seja novamente analisada pelo STF e, tendo em vista as recentes mudanças na composição da corte, o desfecho continua imprevisível.
Fonte: Bichara Advogados para ConJur