A implementação do compliance trabalhista pelo agronegócio como forma de combate ao trabalho escravo contemporâneo

Cerizze

Por Graziella Ferreira Alves

Segundo o Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do Trabalho no Brasil, em 2021 a Inspeção do Trabalho identificou 1.959 trabalhadores em Condições Análogas à de Escravo, desses 1.552 no meio rural, sendo que, para o ano de 2022, de janeiro a 13 de maio há haviam sido identificados 466 trabalhadores no mesmo cenário, sendo 34 trabalhadores resgatados no meio urbano (SUBSECRETARIA DE INSPEÇÃO DO TRABALHO, s.d.).

Portanto, o meio rural continua sendo ambiente de maior identificação de trabalhadores reduzidos à condição análoga a de escravo, sendo 79% no ano de 2021 e 93% até o presente momento no ano de 2022. Não por outro motivo, o campo segue sendo ambiente de maior fiscalização pelo MTP e MPT.

Nesse contexto, o produtor rural que pretenda ser competitivo no mercado, e que deseje exercer sua atividade de modo sustentável e lucrativo, não figurando na “lista suja” de empregadores escravagistas, deve estar plenamente adequado às normas trabalhistas, independentemente do porte de seu negócio, sendo imprescindível a implementação das ferramentas de compliance para se atingir tal escopo.

CONTEXTO ATUAL E FERRAMENTAS DE COMPLIANCE
O meio rural segue sendo ambiente de maior número de resgate de trabalhadores identificados em condições análogas a de escravo, quando comparado ao meio urbano, conforme dados expostos no preâmbulo do presente estudo.

Sem dúvida, as fiscalizações realizadas pelo Ministério do Trabalho e Previdência e pelo Ministério Público do Trabalho, além das ações decorrentes de tais fiscalizações, contribuem para uma necessidade de maior conformidade dos empregadores rurais.

Não raro, as ações trabalhistas ajuizadas pelo MPT contra empregadores rurais em que se discutam circunstâncias de trabalho análogo a de escravo contam com pedidos de indenizações por danos morais coletivos. Esses, quando procedentes, podem apresentar condenações de valores expressivos, dada a relevância do bem da vida tutelado, a exemplo da condenação em R$ 5.000.000,00 (cinco milhões de reais) confirmada pelo TST no bojo do RR 178000-13.2003.5.08.0117, cuja exordial contava com pedido de R$ 85.0000.000,00 (oitenta e cinco milhões de reais) aduzido pelo MPT (BRASIL, 2010).

Em patamar inferior, mas condizente com o porte econômico do empregador, a 7ª Turma do TST fixou em R$ 200.000,00 (duzentos mil reais) a indenização pelas condições degradantes pelas quais passaram os trabalhadores, tal como conjunto probatório produzido no RR-198000-50.2006.5.08.0110 (BRASIL, 2018).

Os pedidos vultosos formulados em Ações Civis Públicas ajuizadas pelo Ministério Público do Trabalho e o risco de condenações expressivas promovem circunstâncias fáticas favoráveis à adequação dos empreendedores rurais, de modo a evitar passivo trabalhista que comprometa a continuidade da atividade.

Dada a importância do assunto, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento aprovou, em 10 de abril de 2019, a Portaria MAPA no 60 que implementa o “PROGRAMA MAPA INTEGRO”, reflexo dos movimentos iniciados após a publicação da Lei Anticorrupção (Lei no 12.846/13), com escopo de fortalecimento de políticas de integridade. Da Portaria MAPA no 60 foi atualizado o Plano de Integridade do MAPA 2019-2022 através da Portaria SE MAPA no 1.830, de 10/05/2020.

Há alguns anos, o Ministério da Agricultura vem reconhecendo empreendedores do agronegócio que busquem desenvolver programas de integridade, conforme expressamente previsto pela PORTARIA MAPA No 402/22 para o ano vigente, sendo objetivo do “Selo Mais Integridade” a premiação de empresas e cooperativas que desenvolvam boas práticas de governança, ética, responsabilidade e sustentabilidade ambiental, com repercussões no plano econômico, social, trabalhista e ambiental, e com objetivo de enfrentamento contra práticas de concorrência desleal, fraudes, corrupção e quebra da ética.(MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, PECUÁRIA E DESENVOLVIMENTO, 2022).

Para obtenção do selo, o empregador rural não pode ter seus dados incluídos no Cadastro de Empregadores que tenham submetido trabalhadores a condições análogas à de escravo (Lista Suja do Trabalho Escravo), além de ser necessária certidão negativa no tocante à fiscalização relacionada à exploração do trabalho infantil ou do menor aprendiz, bem como às “Normas Regulamentadoras do Trabalho Rural” declaradas como cumpridas no relatório técnico denominado “Programa de Gestão Sustentável”, previsto na referida Portaria e que se relaciona com a NR-31 (MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, PECUÁRIA E DESENVOLVIMENTO, 2022).

Não se ignora que parcela do empresariado rural envida esforços em sentido contrário, com vistas a desregulamentação de direitos protetivos ao meio ambiente e ao trabalho digno, muitas vezes buscando a desconstrução de políticas públicas implementadas e em andamento, em especial para o combate ao trabalho análogo a de escravo (PITZ, 2021).

Outrossim, já é notória a ausência de investimento adequado nas estruturas de combate ao trabalho escravo ao longo dos anos, em especial na auditoria fiscal do trabalho, tendo o menor patamar em 2020, com redução de 41% no orçamento do órgão (SOUZA, 2021, p. 125).

Lado outro, além da importância da imagem e reputação como um ativo do empreendedor a ser preservado (CARLOTO, 2021, p. 175), pesquisas indicam que a adoção de medidas de conformidade no segmento produtivo rural pode ser fator de sustentabilidade e maior lucratividade, tal como sinaliza Faria

[…] afirma-se que de fato existe uma relação entre programas de compliance
e redução de custos de transação, o que pode, potencialmente colaborar com
a coordenação dos sistemas agroindustriais, incrementando a sua
competitividade, em especial a cadeia produtiva de referência. (FARIA, 2020,
p. 77).

Segundo Iuri Pinheiro e Fabrício Lima, o conceito de compliance abarca noção de conformidade aos princípios de governança corporativa e a legislação vigente, se identificando e classificando os riscos operacionais e legais com vistas à boa gestão e prevenção (PINHEIRO; LIMA, 2020, p. 42/43).

O programa de compliance trabalhista deve ser adaptado ao agronegócio, para que as ferramentas implementadas tragam os resultados de conformidade esperados. As ferramentas mais utilizadas são: mapeamento dos riscos; elaboração de Código de Ética e Conduta; elaboração do Regulamento Interno e Políticas; realização de treinamentos, palestras e orientações; e instituição do canal de denúncias. A terceirização e a prestação de serviços autônomos devem ser minuciosamente avaliadas, em razão dos riscos envolvidos.

Mesmo o empregador rural de menor porte consegue implementar diversas das ferramentas descritas acima, devendo contar, em especial, com o mapeamento de riscos, através de análise de documentos e vistoria in loco. Adverte-se que a auditoria à distância, no caso do produtor rural, pode não ser efetiva para análise dos riscos ambientais, em especial para verificação de conformidade com a NR-31.

Não raro, a configuração de trabalho análogo a de escravo está diretamente relacionada com as condições degradantes previstas no art. 149 do Código Penal e nas Portarias do Ministério do Trabalho relacionadas ao tema, tornando-se imprescindível a análise presencial da propriedade rural onde se desenvolve a atividade laborativa (alojamentos, frente de trabalho, refeitórios, dentre outros ambientes).

Destarte, recomenda-se, mesmo ao menor produtor rural, a realização de auditoria com vistoria presencial, com escopo de identificação de passivo trabalhista existente e posterior elaboração de Regulamento Interno e Políticas de Boas Práticas Trabalhistas, sendo concluído o programa de compliance com a instituição do canal de denúncias. Tais práticas preventivas certamente tornarão o negócio mais sustentável e livre do trabalho escravo contemporâneo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Recurso de Revista 178000-13.2003.5.08.0117. Recorrente: Construtora Lima Araújo Ltda. e Outros. Recorrido: Ministério Público do Trabalho da 8a Região. Relator: Ministro Vieira de Mello Filho. 18 de agosto de 2010. Trânsito em julgado em 01/10/2012. Disponível em . Acesso em 12 set 2022.

__. Tribunal Superior do Trabalho. Recurso de Revista 198000-50.2006.5.08.0110. Recorrente: Ministério Público do Trabalho da 8a Região. Recorridos: Valdir Leandro De Sá, José Carlos Galletti, Abraúnes Silva Lacerda e Outros. Relator: Desembargador Convocado Ubirajara Carlos Mendes. 04 de dezembro de 2018. Trânsito em julgado em 13/03/2019.

FARIA, Renato de Sousa. Compliance no Agronegócio: possibilidades e desafios para a cadeia produtiva do tomate industrial em Goiás. 90 fls. Dissertação (Mestrado). Universidade Federal de Goiás. Escola de Agronomia. Programa de Pós-Graduação em Agronegócio. Goiânia, 2020.

MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, PECUÁRIA E DESENVOLVIMENTO. Portaria no 402, de 23 de fevereiro de 2022: aprova o regulamento do Prêmio “Selo Mais Integridade” relativo ao exercício 2022/2023, destinado a empresas e cooperativas do desenvolvam agronegócio que, reconhecidamente, desenvolvam boas práticas de integridade, ética responsabilidade social e sustentabilidade ambiental. Publicado em 24/02/3033. Edição: 39.Seção: 1. Página 6.

PINHEIRO, Iuri; LIMA, Fabrício. Manual do compliance trabalhista: teoria e prática. Salvador: Editora JusPodivm, 2020. PITZ, Daniel Luiz. Trabalho escravo contemporâneo, Estado e o desfinanciamento de políticas públicas no Brasil. 160 f. Dissertação (mestrado). Universidade Federal
Fluminense, Niterói, 2021.

SOUZA, Eduarda Oliveira Castro de. PEC do trabalho escravo: uma análise do discurso em torno da sua tramitação. 133 f. Dissertação (Mestrado). Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Pós-Graduação em Ciências Sociais, Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade, 2021.

SUBSECRETARIA DE INSPEÇÃO DO TRABALHO. Ministério do Trabalho e Previdência. Radar SIT: Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do Trabalho no Brasil. S.d. Disponível em https://sit.trabalho.gov.br/radar Acesso em 07 set 2022.

Fonte: Cerizze

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