Por Pedro Paulo de Andrade Naves
Diz-se por aí que em um lugarzinho qualquer bem afastado da civilização, os valores se deturparam e a prática já não refletia mais do que uma imagem opaca e borrada do que era a teoria. Nesse cenário estranho, entretanto, a carreira jurídica costumava inspirar um sem-número de alunos nos bancos das escolas, e se ainda havia escolas nesse lugarzinho talvez ele não fosse de todo ruim. Mas assim que os alunos saiam da escola e se deparavam com as ações daqueles que os costumavam inspirar, se assustavam, porque elas não condiziam com a sua nobreza e importância.
E o susto não era um susto qualquer, senão um susto que paralisa, faz a vista embaçar e gela a espinha. Foram ensinados na escola que a acusação era a mantenedora da ordem legal, e, por outro lado, que a defesa era a última barreira entre o indivíduo e o arbítrio estatal. Sendo assim, quem poderia manter os primeiros atrelados à lei quando agiam a sua margem, e, de outro modo, como superar o prejuízo gerado quando os segundos se omitiam de seu dever?
O processo penal, agressivo pela sua própria natureza, para ocorrer de modo capaz de resguardar a dignidade dos investigados de maneira minimamente aceitável, exige, tanto da defesa quanto da acusação, o exercício de seus papéis revestidos de inexorável carga de alteridade. Mas determinadas situações intoleráveis revelavam um verdadeiro procedimento tirânico no qual o investigado era um mero objeto de
averiguação ao invés de sujeito de direitos.
Lá, os órgãos de investigação não tinham estrutura para a tarefa, e a acusação quando se imiscuiu na função parecia não ter expertise. Não se interessava em apurar a verdade e para cumprir metas de produtividade acabava resolvendo na força, afinal, era o Estado. Assim as investigações eram malfeitas, e a estratégia dominante era incutir medo. Uma conduta de tipicidade duvidosa subsumia-se a inúmeros tipos penais acumulando-se longos anos de pena a ser cumprida. Se prendia para investigar, pois as hipóteses legais de cabimento já não mais importavam. A palavra de qualquer dos investigados passou a ser o bastante como elemento de prova, e os investigados falavam até do que não sabiam pois, claro, tinham medo. A defesa não ficava para atrás, pois agia de modo tão somente pro forma. Existia para legitimar o procedimento, mas não atuava da maneira diligente e firme, e não se insurgia diante dos desmandos.
Naturalmente, de início, se ressalve a grande maioria de acusadores e defensores que atuam com competência, diligência e coragem, mas, mutatis mutandis, há uma certa dose de tirania no Brasil. Aqui tem se chamado de overcharcing um padrão de comportamento que se assemelha ao descrito. No dicionário inglês, overcharging, em tradução livre, significa a prática de exigir que alguém pague mais do que o preço. No processo penal se traduz como um agravamento desarrazoado das acusações, seja por falta de responsabilidade ou por política institucional, seja com uma imputação mais gravosa do que os elementos de informação autorizam (vertical) ou com o acréscimo de imputação que não se baseia em elementos de informação nenhum (horizontal).
Fatores¹ como o aumento da complexidade das relações sociais, a globalização e o desenvolvimento tecnológico fizeram com que se originasse um espaço de intervenção estatal novo, o qual em um primeiro momento não era abrangido pelo direito penal clássico. Esse novo cenário impulsionou o Estado a se readequar através da criação de uma série de leis esparsas e pontuais, além de estratégias próprias que visavam tutelar o bem jurídico em perigo. Aflorou-se aqui o Direito Penal Econômico. E nesse cenário têm-se percebido que o delito de lavagem de dinheiro é um campo fértil para a imoral e nefasta prática de overcharging.
A expressão “lavagem”² teve sua origem na América do Norte, na época em que era praxe que mafiosos utilizassem de lavanderias para ocultar a origem criminosa do dinheiro auferido ilicitamente. Atualmente, nos termos da Lei 9.613/98, pode ser conceituada como a prática de uma atividade supostamente lícita que tem a finalidade de transformar o dinheiro ilícito em lícito, através das fases colocação (placement); dissimulação (layering); e integração (integration). Para que ocorra a consumação é despiciendo que o agente percorra as três etapas, bastando que uma delas ocorra. Naturalmente é um delito acessório, pois depende da ocorrência de uma infração penal antecedente, muito embora autônomo, pois é independente e não absorve o ilícito anterior.
Por aqueles que transitam na prática, rotineiramente se observa uma série de condutas que, embora fatalmente devessem ser desnudadas e conduzidas à absolvição, colocam o indivíduo sob a dura espada da justiça, enfrentando as terríveis agruras de um processo criminal vazio de justa causa. Não se esquecendo da infinita complexidade das situações do cotidiano, são elas:
PRIMEIRA³, a ausência de constatação do crime antecedente: embora se diga ser despicienda a comprovação da prática do delito antecedente, o alegado diz respeito à autonomia dos delitos, bastando, portanto, a configuração do injusto penal, independente da análise da culpabilidade. Não obstante, é indispensável que se estabeleça um vínculo lógico-formal entre os proveitos adquiridos e a infração penal antecedente, devendo a denúncia ser instruída com as provas suficientes para configuração do fato típico e ilícito.
SEGUNDA4, a ausência do elemento subjetivo de conhecimento por parte do suposto autor da lavagem de dinheiro e a procedência ilícita dos proveitos: muito embora parcela da doutrina e jurisprudência entenda que o dolo eventual possa caracterizar o crime, conforme teoria da cegueira deliberada, fato é que não existe lavagem de dinheiro culposa. É imprescindível que esteja demonstrado na denúncia que o agente tinha conhecimento da procedência ilícita dos valores utilizados na lavagem de dinheiro.
TERCEIRA5, imputação de lavagem de dinheiro por mera ocorrência de proveito econômico do produto do crime: nem todo comportamento econômico que gera proveitos, ainda que oriundo de atividade ilícita, é suficiente para configuração da lavagem de dinheiro, sendo imperiosa a demonstração da conduta voltada a ocultar ou dissimular os proveitos.
QUARTA⁶, transformação de crime único em crimes múltiplos: trata a lavagem de dinheiro de crime de ação múltipla no qual o tipo contém várias modalidades de condutas delituosas que, quando praticadas, constituem fases de um mesmo crime.
Movimentações realizadas sequencialmente muitas vezes representarão apenas fases de aprofundamento dentro de um mesmo ciclo de lavagem, já devidamente exaurido. Assim, independente da sofisticação ou da quantidade de possíveis condutas típicas praticadas, a ocultação ou dissimulação configurará sempre um único crime quando efetuada sobre os mesmos proveitos originados da infração antecedente.
QUINTA⁷, aplicação de concurso material entre o mero recebimento indireto de valores oriundos de corrupção passiva e a lavagem de dinheiro: conforme narra o artigo 317 do CP, o recebimento de vantagem por modo clandestino, capaz de ocultar o real destinatário, integra a própria materialidade do tipo penal.
Para se falar em concurso material entre os delitos, necessária seria a demonstração de ação distinta e autônoma de lavagem, através de atos posteriores objetivando a recolocação da vantagem indevida na economia formal. Logo, quando a ocultação ou dissimulação se limita ao recebimento indireto dos valores, ocorre a contingência entre os tipos penais, conforme princípio da consunção.
SEXTA⁸, pedido de perdimento de valores apreendidos em situação de absolvição: impensável imaginar que possa subsistir a sanção de perdimento de bens apreendidos quando o acusado é absolvido da imputação única do delito de lavagem de dinheiro. Situação dantesca, porém, rotineira.
Conforme se nota dos exemplos colacionados, bem como do dia a dia forense, o overcharging é uma prática cada vez mais comum no âmbito do processo penal e pode representar infindáveis danos aos perscrutados. A existência do processo, por si só, representa um stato di prolungata ansia, conforme expressão cunhada na Exposição de Motivos do Código de Processo Civil Italiano, encontrando maior campo de aplicação no âmbito penal e se configurando no mais das vezes verdadeira pena antecipada⁹.
Não deixando de lado o obscurantismo que impera nas ciências jurídicas, a moral que filtra o direito¹⁰, os apelos populares e irracionais que bradam gritos de lei e ordem, as decisões solipsistas e contra legem, não se pode perder de mente que um dos primeiros direitos do réu é o direito de ser bem acusado. A esse respeito, e pelas excessivas vezes que denúncias são oferecidas – e recebidas – sem um mínimo lastro de justa causa, além da importância do desenvolvimento de um mecanismo de controle externo da atividade acusatória, é imperioso que o investigado possa contar com uma defesa técnica e zelosa, que poderá colaborar com a tomada de decisão através da demonstração de uma distinta realidade dos fatos.
¹ PRADO, Luiz Regis. Direito Penal Econômico – 8a ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2019.
² HABIB, Gabriel. Leis Penais Especiais volume único – 11a ed. rev.,atual. e ampl. – Salvador: Juspodivm, 2019.
³ A esse respeito, ver Apelação Criminal 1.0024.14.222621-6/001 – TJMG.
4 A esse respeito, ver Apelação Criminal 1.0105.16.017415-4/001 – TJMG.
5 A esse respeito, ver Apelação Criminal 1.0183.18.002170-5/001 – TJMG.
⁶ A esse respeito, ver Embargos Infringentes 000625186.2006.4.03.6181/SP – TRF3.
⁷ A esse respeito, ver https://www.conjur.com.br/2018-dez-03/direito-defesa-nem-sempre-correta-dupla-imputacao-corrupcao-lavagem. Acesso em 28/04/2020.
⁸ A esse respeito, ver Apelação Criminal 1.0126.16.001619-5/001 – TJMG.
⁹ LOPES JÚNIOR, Aury. Direito Processual Penal – 17 ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2020.
¹⁰ https://www.conjur.com.br/2016-dez-29/senso-incomum-breve-ranking-decisoes-fragilizaram-
direito-2016. Acesso em 28/04/2020.
FONTE
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