Por Aline Tierling
Volumoso é o número de demandas que aportam ao Poder Judiciário diariamente, tendo como objeto a revisão de contratos, nas quais os demandantes se colocam na condição de consumidores. Invariavelmente, os pedidos de revisão das cláusulas contratuais encontram fundamento dos dispositivos do Código de Defesa do Consumidor.
A legislação consumerista busca privilegiar a proteção à parte considerada vulnerável na contratação e estabelece, de forma ampla e pouco específica, hipóteses que permitem a revisão de disposição contratual considerada abusiva ou estipulada em seu desfavor, a começar pela interpretação das cláusulas contratuais de maneira mais favorável ao consumidor. Disposições neste sentido representam o núcleo do Código de Defesa do Consumidor.
Em polo diametralmente oposto, temos a Lei da Liberdade Econômica, que teve origem na Medida Provisória n. 881/2019 editada pelo Poder Executivo e, posteriormente, convertida na Lei n. 13.874/2019 por meio de aprovação pelo Poder Legislativo, cujo cerne é a simplificação das operações econômicas, para conferir-lhes maior efetividade e segurança jurídica. A Lei n. 13.874/2019 visa desburocratizar as atividades econômicas e incentivar o seu desenvolvimento, tornando o mercado mais atrativo e seguro ao aporte de investimentos internos e externos.
É necessário que as disposições contidas na Lei n. 13.874/2019 sejam reafirmadas e se tornem tema trivial aos operadores do direito afeiçoados com a aplicação da lei consumerista de forma indistinta e ilimitada. A Lei da Liberdade Econômica veio para modificar a forma de interpretação das disposições contratuais, conforme demonstra trecho da exposição de motivos, cuja transcrição se mostra imperativa e esclarecedora:
O objetivo desta Medida Provisória diferencia-se das tentativas do passado por inverter o instrumento de ação, ao empoderar o Particular e expandir sua proteção contra a intervenção estatal, ao invés de simplesmente almejar a redução de processos que, de tão complexos, somente o mapeamento seria desgastante e indigno, considerando que os mais vulneráveis aguardam por uma solução.
Não se pretende realizar aprofundado comparativo entre o Código de Defesa do Consumidor e a Lei da Liberdade Econômica. Todavia, não se pode deixar de destacar que esta visa ao empoderamento do particular, enquanto aquela tem como objetivo destacar sua posição de vulnerabilidade.
É com fundamento nos dispositivos do Código de Defesa do Consumidor, que consideram o particular pessoa limitada na contratação, que se multiplicam as Ações de Revisão de Cláusulas Contratuais, cuja disseminação deve ser limitada com fundamento no inciso III, do artigo 2º e no inciso V, do artigo 3º, da Lei n. 13.874/2019¹.
A Lei da Liberdade Econômica determina que se parta do pressuposto de que as partes possuam conhecimento das implicações de contrato firmado e impõe seja a intervenção do Estado nas relações particulares excepcional e justificada, de modo a prestigiar a manutenção das obrigações assumidas pelas partes.
Esta interpretação resta confirmada pela exposição de motivos da previsão contida no inciso V, do artigo 3o, da Lei n. 13.874/2019, conforme se expõe:
Presume-se a boa-fé nos atos praticados no exercício da atividade econômica, devendo os casos de dúvida, na interpretação do direito, serem resolvidos no sentido que mais preserva a autonomia de sua vontade, salvo expressa disposição legal em contrário. É uma premissa do Estado de Direito a de que a liberdade impera e a restrição é a exceção. Não se pode, então, permitir que na dúvida sobre a interpretação de um dispositivo, adote-se uma interpretação mais restritiva. (grifo nosso)
Impende destacar que não se esta defendendo a manutenção das relações contratuais a custa do desequilíbrio injustificado. Entretanto, a entrada em vigor da Lei da Liberdade Econômica visa a limitar a intervenção do Poder Judiciário de forma indiscriminada nos contratos legalmente firmados.
Pode-se observar que o Código de Processo Civil, de forma instrumental, contém disposição que estabelece determinadas exigências para a propositura de Ação de Revisão de Cláusula Contratual, como se pode vislumbrar, por exemplo, pela redação do parágrafo 2º, do artigo 330². Infere-se, portanto, que não foi a Lei da Liberdade Econômica que inaugurou a limitação à intervenção do Poder Judiciário nos contratos particulares.
Diante destas considerações, importa levar em consideração, além da possível vulnerabilidade do consumidor, a manutenção da autonomia da vontade e da liberdade de contratar, sopesando-se a aplicação das disposições do Código de Defesa do Consumidor e da Lei da Liberdade Econômica, para que se avalie se a situação apresentada é de tal modo excepcional que exija a intervenção do Poder Judiciário. Caso contrário, não deve haver qualquer intervenção, mantendo-se intocadas as obrigações assumidas pelas partes contratantes.
¹ Art. 2o São princípios que norteiam o disposto nesta Lei: […]
II – a intervenção subsidiária e excepcional do Estado sobre o exercício de atividades econômicas; e
Art. 3º São direitos de toda pessoa, natural ou jurídica, essenciais para o desenvolvimento e o crescimento econômicos do País, observado o disposto no parágrafo único do art. 170 da Constituição Federal:
[…]
V – gozar de presunção de boa-fé nos atos praticados no exercício da atividade econômica, para os quais as dúvidas de interpretação do direito civil, empresarial, econômico e urbanístico serão resolvidas de forma a preservar a autonomia privada, exceto se houver expressa disposição legal em contrário;
² Art. 330. A petição inicial será indeferida quando:
[…]
§ 2º Nas ações que tenham por objeto a revisão de obrigação decorrente de empréstimo, de financiamento ou de alienação de bens, o autor terá de, sob pena de inépcia, discriminar na petição inicial, dentre as obrigações contratuais, aquelas que pretende controverter, além de quantificar o valor incontroverso do débito.
Fonte: Lippert Advogados
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