A legitimidade do produtor rural para propositura do pedido de recuperação judicial

Lippert Advogados

Por Isabella Maria Castoldi

A atividade rural sempre exerceu um papel de grande importância no desenvolvimento econômico e social do Brasil. Entretanto, até o advento do Código Civil de 2002 não existia disposição normativa que equiparasse o trabalho desenvolvido pelo produtor rural ao de um empresário.

Com a promulgação do Código Civil, foi introduzida no ordenamento jurídico brasileiro a figura da teoria da empresa em substituição à teoria dos atos de comércio, apresentando no artigo 966 o conceito de empresário como “[…] quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços.”

Tal conceito aplica-se para múltiplos agentes econômicos, incluindo o produtor rural que exerce a atividade com finalidade empresarial, ou seja, organizada para a produção ou a circulação de bens.

Além do conceito geral, o texto legislativo dispõe expressamente sobre a obrigatoriedade da inscrição do empresário junto ao Registro Público de Empresas Mercantis da respectiva sede, sob pena de atrair para si ônus decorrente do exercício de atividade irregular. Esta obrigatoriedade, entretanto, é dispensada ao
empresário rural, a quem a legislação facultou a inscrição perante o órgão competente, nos termos dos artigos 971 e 984 do Código Civil.

Essa inscrição não diz respeito à aplicabilidade do conceito de empresário ao produtor rural, mas versa sobre a submissão completa do inscrito ao regime jurídico próprio dos empresários, podendo, assim, usufruir de todos os mecanismos jurídicos disponíveis aos empresários inscritos.

Ou seja, ainda que o desenvolvimento da atividade seja responsável por qualificar o produtor rural como empresário ou não, para valer-se do instituto da recuperação judicial, deverá obrigatoriamente inscrever-se no Registro Público de Empresas Mercantis.

Outro pressuposto para o deferimento do processamento da recuperação judicial ao produtor rural é a comprovação do exercício regular de suas atividades por, no mínimo, dois anos, prazo previsto pelo artigo 48 da Lei de Recuperação Judicial e Falências.

Nos últimos anos, instaurou-se extenso debate doutrinário e jurisprudencial sobre como seria comprovado o lapso temporal de dois anos, se a partir da inscrição no Registro Público de Empresas Mercantis ou se seriam considerados dois anos de regularidade da atividade empresarial.

A doutrina majoritária¹ firmou posicionamento no sentido de que o prazo de dois anos refere-se unicamente ao desenvolvimento da atividade empresarial de forma regular e contínua. Isso porque o requisito temporal visa a garantir que somente as empresas minimamente estabelecidas – em atividade por pelo menos dois anos – possam buscar seu soerguimento, contando, para isso, com o auxílio
estatal para negociar com seus credores e reestruturar-se.

Perante os Tribunais, a questão foi igualmente controvertida, havendo decisões em ambos os sentidos.

No julgamento do Recurso Especial n° 1.193.115-MT (2013), a corte superior firmou entendimento de que havendo registro do produtor rural na Junta Comercial no momento do pedido de recuperação judicial, considera-se cumprida a exigência do artigo 48 da Lei 11.101/2005.

Posteriormente esse entendimento foi chancelado no julgamento dos REsp 1.800.032-MT (2020) e REsp 1.811.953/MT (2020), restando compreendido pela turma julgadora, que a regularidade do exercício da atividade pelo período de dois anos não é verificada pelo registro na Junta Comercial. Portanto, o produtor rural que estiver devidamente inscrito na Junta Comercial em momento anterior ao pedido de recuperação judicial e comprovar o exercício de atividade empresarial rural por período superior a dois anos, poderá valer-se do instituto da recuperação judicial.

Outro ponto que gerou controvérsia diz respeito aos créditos que se sujeitariam ao procedimento da recuperação judicial do empresário rural, isto é, se os créditos constituídos antes da inscrição junto ao Registro de Empresas Mercantis poderiam ser incluídos no procedimento recuperacional ou não.

A Lei 11.101/2005, no artigo 49, caput, prevê expressamente que serão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, incluindo os não vencidos.

De forma contrária à disposição legal, parte da doutrina e jurisprudência passou a considerar que os créditos constituídos antes do registro do empresário rural não se submeteriam à recuperação, em razão da diferença de regimes jurídicos existentes antes e após a inscrição no Registro Público de Empresas
Mercantis².

Em uma das poucas decisões sobre a matéria, a 1a Câmara Reservada de Direito Empresarial do TJSP deu provimento ao Agravo de Instrumento n. 2028287-46.2017.8.26.0000, para determinar a exclusão dos créditos anteriores a inscrição do produtor rural no registro, sob o fundamento de que, apesar do caráter facultativo da inscrição, esta não possui efeitos retroativos, motivo pelo qual os créditos constituídos anteriormente, não poderiam submeter-se ao regime jurídico diferenciado.

Em junho de 2019, na III Jornada de Direito Comercial, foi aprovado o Enunciado 96, que dispõe “são sujeitos à recuperação judicial do empresário rural, seja ele pessoa física ou jurídica, todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que anteriores à data da inscrição na Junta Comercial”.

A matéria também foi objeto do Recurso Especial 1.800.032/MT (2020), tendo a 4a Turma do Superior Tribunal de Justiça firmado posicionamento quanto à possibilidade da inclusão na recuperação judicial dos créditos constituídos anteriormente à formalização na Junta Comercial.

Essa decisão vai ao encontro da legislação, que não faz diferenciação entre credores simples e credores empresariais.

À luz disposições contidas no Código Civil, na Lei de Recuperação Judicial e do entendimento vigente no Superior Tribunal de Justiça, conclui-se que o produtor rural é parte legítima para postular a recuperação judicial, desde que preenchidos os requisitos acima delineados, procedimento ao qual se sujeitam todos os créditos existentes antes do pedido, ainda que anteriores ao registro na junta comercial.

¹ BARBOSA, Henrique; DA SILVA, Jorge Cesa Ferreira (org.). A evolução do Direito empresarial e obrigacional: 18 anos do Código Civil. São Paulo: Quartier Latin, 2021.
WAISBERG, Ivo; RIBEIRO, José Horácio H.R.; SACRAMONE, Marcelo Barbosa (org.). Direito comercial, falência e recuperação judicial: temas. São Paulo: Quartier Latin, 2019.

² PEREIRA, Franco; DIAMANTE, Thiago. Os créditos sujeitos à recuperação judicial do produtor rural, Revista dos Tribunais, v. 107, 2021. p. 7-8.

Escritório Aliado: Lippert Advogados

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