Por Rita de Cassia G. Cabral (advogada associada) e Ruan B. G. Cabral (eng. ambiental e de energias renováveis)
1. Introdução
Dia 04 de abril de 2021, foi o dia em que o Brasil chegou à marca devastadora de 330.000 mortes causadas pela COVID-19 desde o primeiro caso relatado em 26 de fevereiro de 2020. De lá para cá, além desses números assustadores, a pandemia tem deixado no país um verdadeiro cenário cataclísmico de ordem social e econômica. De fato, o país viu seu PIB recuar mais de 4% em um dos piores resultados em mais de 24 anos e viu a taxa de desemprego atingir 14,6% (mais de 14 milhões de brasileiros). Impactos severos foram vistos em todos os ramos da economia brasileira; da construção civil à atividade industrial. Mas, dentre todos os ramos da economia, a agricultura foi que menos sofreu os impactos da pandemia, registrando uma queda de 0,4% no último trimestre, segundos dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Esse resultado mostra como o setor agrário brasileiro é amplo e resiliente a crises de grandes magnitudes.
A agricultura é um dos mais importantes setores da economia brasileira e é responsável por mais de 21% do PIB brasileiro, o que representa mais de 1 trilhão e meio de reais por ano. Dada a grande relevância desse setor, é imprescindível que os mecanismos regulatórios atentem sempre para a constante melhoria desse setor produtivo fornecendo segurança jurídica, ambiente de negócios competitivos, e uma ampla gama de instrumentos financeiros a fim de subsidiar o pleno desenvolvimento do setor que, naturalmente enfrenta grandes incertezas dada a dependência de fatores climáticos e ambientais. Nesse contexto, a sanção da medida provisória (MP) nº. 897, de 1 de outubro de 2019 convertida na Lei nº. 13.986, de 7 de abril de 2020 é um dos mais importantes mecanismos regulatórios já criados para a modernização dos ambientes de negócios no setor agrário.
2. Antecedentes
A história dos mecanismos de financiamento para o setor agrário no Brasil sempre teve como instrumento de primeira linha o crédito. O ponto inicial para o estabelecimento dos mecanismos de financiamento no país remonta a 1965 com a criação do Sistema Nacional de Crédito Rural (SNCR) que teve por finalidade (i) ofertar créditos a juros a baixo do mercado, (ii) exigência legal de que os bancos dediquem uma parte de seus depósitos à vista a linhas de crédito rural e (iii) incentivar pequenos produtores familiares com produtos financeiros diferenciados (Lopes et al., 2016).
Durante os anos 60 e 70, houve uma grande interferência do estado no setor agrícola, principalmente com a injeção de crédito a juros subsidiados o que acabou por expandir todo o setor e a elevar o nível de produtividade, que por sua vez levou serviços como assistência técnica, pesquisa e desenvolvimento, seguros, armazenagens, e todo um ramo especializado em cadeias produtivas agrícolas, a se consolidarem no país desde então. Nos anos 80, devido a alta da inflação no País, o Estado precisou modificar sua política para o setor, o que levou a reduções nos subsídios e o favorecimento na atuação de agentes privados. Com a estabilização monetária na década de 90, e uma nova política de desregulamentação em vários setores, o Estado reduziu ainda mais suas participações como agente financeiro no setor dando espaço para novos agentes privados e atuando apenas como regulador e incentivador dessas atividades (Ramos & Junior, 2010).
Devido a diminuição progressiva do Estado como fornecedor de crédito ao setor, foi criada em 1994 a Cédula de Produto Rural (CPR) (Lei n° 8.929, de 22 de agosto de 1994), que funciona como um título emitido pelos produtores afim de angariar financiamento junto a agentes financeiros públicos e privados e trata-se do principal instrumento para captação de recursos pelos atores do setor produtivo rural.
Com o avanço da produção no campo, ficou claro que os aportes de crédito rural oficial não seriam, por si só, suficientes para acompanhar a demanda do setor e o instituto da CPR tornou-se de suma importância para a diversificação das linhas de financiamento. De fato, as movimentações financeiras envolvendo as CPRs representaram mais de 30% da demanda do setor e outros 40% foram financiados com recursos próprios em 2004 (Castro, 2017) e isso dá a real dimensão do gargalo que o setor tem enfrentado em termos de aportes de recursos mesmo com a criação da CPR. Nesse sentido, a sanção da lei nº. 13.986 estabeleceu novos mecanismos facilitadores a obtenção de crédito pelos produtores rurais e fortaleceu ainda mais o instituto da CPR, ampliando ainda mais seu alcance como instrumento de captação de recursos junto a uma gama muito ampla de instituições financeiras.
3. A lei do Agro: avanços e expectativas
Uma série de mudanças foram estabelecidas na Lei nº. 13.986/20, com melhorias em alguns dispositivos já existentes e o estabelecimento de instrumentos financeiros inéditos para o setor agrário.
Como mencionado anteriormente, a nova lei, em seu capítulo VI, fortalece ainda mais o importante instrumento do setor que é a CPR. Um dos principais aspectos positivos da lei está na ampliação do rol de produtos rurais que podem ser agora emitidos com a cédula, o que abre espaço a um amplo mercado de crédito em setores como aquicultura, psicultura e produtos advindo de manejo em florestas plantadas.
Para além disso, um importante gargalo regulatório foi suplantado pela nova lei, que agora estabelece que as novas CPRs podem ser vinculadas a moedas estrangeiras, o que trás uma enorme vantagem ao produtor que tem partes de suas atividades financiadas por insumos cotados em moedas externas. Já em relação a desburocratização deste instituto, a Lei do Agro determina agora que as CPRs podem ser emitidas de forma completamente virtuais, o que poupa uma enorme quantidade de tempo nos processos de emissão que antes eram feitos exclusivamente no punho dos produtores rurais.
Com relação aos novos institutos criados, destaca-se o chamado Fundo Garantidor Solidário (FGS), cuja finalidade é dar mais segurança aos investidores e produtores do setor. Na nova lei esses fundos podem ser criados com no mínimo dois (2) produtores e no máximo dez (10), além da participação de empresas, e instituições financeiras (fornecedores de crédito e garantidores). A principal meta do FGS é garantir que os membros do fundo tenham acesso a linhas de financiamento e mesmo consolidem dívidas com os recursos do fundo desde que respeitadas a estrutura de integralização por cotas (Art.° 1 ao 6, capítulo I).
No novo marco regulatório também ficou instituída a criação do Patrimônio Rural em Afetação, que é o mecanismo pelo qual o produtor rural pode estratificar seu imóvel rural e assim oferta-lo como garantia na tomada de crédito. Em suma, a lei determina que para a tomada de crédito o produtor poderá agora fornecer como garantia não toda a extensão de sua propriedade rural, mas sim uma parte desta. Isso cria um mecanismo mais igualitário entre as operações de crédito e amplia ainda mais a competição entre as instituições financeiras, além de dar maior segurança jurídica e econômica ao produtor rural.
Por fim, a legislação quebrou um grande monopólio (que antes era de apenas oito instituições financeiras) exercido sobre os mecanismos de equalização de taxas de juros. Antes da Lei nº 13.986, apenas essas instituições tinham permissão para acessar o mecanismo (que na prática funciona como um subsídio governamental dado as empresas em favor dos produtores rurais) e isso reduzia muito a competição no mercado de crédito rural, o que refletia a pequena quantidade de contratos vinculados aos mecanismos já existentes para a captação de recursos (como os CPRs, por exemplo). Com a nova lei, qualquer instituição financeira credenciada pode acessar o mecanismo de equalização e o efeito prático disso é que o crédito fluirá em maior quantidade e qualidade dentro do setor.
4. Conclusão
O setor agrário brasileiro tem sido, historicamente, um importante motor da economia e desempenhado um papel social, econômico e ambiental de grande relevância para o país desde a sua fundação. Não obstante, o rápido avanço não vinha sendo acompanhado de perto pelo legislador e as necessidades constantes de modernização regulatória criavam barreiras à qualidade da expansão. Um dos grandes gargalos, como mostrado neste artigo, repousava sobre a falta de oferta de crédito competitivo e de qualidade de que o setor tanto demandava. Com a edição da da lei nº 13.986, de 7 de abril de 2020, fica restabelecido o vínculo benéfico entre uma legislação eficaz e sua efetiva aplicabilidade ao setor agrário brasileiro, com este último agora tendo ampliado as garantias legais para que o seu crescimento sustentado seja uma realidade nos anos de grandes desafios que o país enfrentará a partir de agora.
Referências
Lopes, D; Lowery, S; Peroba, T. L. C. Crédito rural no Brasil: desafios e oportunidades para a promoção da agropecuária sustentável. Revista do BNDES 45, junho 2016.
Ramos, S. Y; Junior, G. B. M. Evolução da política de crédito Rural Brasileira. Embrapa Cerrados, Planaltina, DF, 2010.
Castro, P. R. V. DO ESTADO AO MERCADO: a trajetória do crédito rural brasileiro e as diversas fontes de financiamento, período colonial ao século XXI. Informações Econômicas, SP, v. 47, n. 3, jul./set. 2017.
Fonte: Cavalcante & Pereira Advogados