Por Luiz Gustavo Bichara e Mattheus Reis e Montenegro
Já virou um surrado clichê constatar que o cidadão médio brasileiro conhece mais os 11 ministros do Supremo que os 11 titulares da seleção de futebol. Embora o desempenho desportivo do escrete canarinho esteja contribuindo para a seleção não ser lembrada pelo povo, a relevância do Supremo Tribunal Federal (STF), mesmo fora do mundo jurídico (que teve início com a transmissão televisiva dos julgamentos), vem cada vez mais se intensificando.
Uma das provas disso é a repercussão do recente julgamento sobre a coisa julgada (decisão contra a qual não cabem mais recursos) em matéria tributária. Em síntese, o STF entendeu que, quando o contribuinte obtém uma decisão transitada em julgado, reconhecendo a inconstitucionalidade de um tributo, haverá a desconsideração automática da força da coisa julgada caso sobrevenha nova decisão em sentido contrário, sendo necessário recolher os tributos até então considerados indevidos. Um tema complexo, que gera há décadas acaloradas discussões na academia e nos tribunais.
O dia seguinte ao julgamento foi intenso para os advogados, obrigados a responder se a coisa julgada havia sido flexibilizada pelo STF. Não seria exagerado dizer que, finalizado o julgamento, o assunto do dia cingia-se ao debate em relação à “morte” da coisa julgada, atribuindo à decisão um alcance bem maior que o tema efetivamente analisado na Praça dos Três Poderes. Por isso parecem-nos oportunos alguns esclarecimentos, sem o juridiquês incompatível com a repercussão do julgamento.
A primeira observação importante é que o caso é restrito à matéria tributária e se aplica apenas aos contribuintes com decisão transitada em julgado de um tema em que, posteriormente, o STF decidiu em sentido contrário à conclusão daquele caso individual.
A segunda está no fato de, mesmo sendo aplicável à matéria tributária, a decisão não afetar qualquer caso, mas sim aqueles em que a relação Fisco-contribuinte se repete periodicamente (“trato continuado”) — como a cobrança de IPTU, PIS, Cofins — e desde que não se refira a uma operação específica e pontual.
A terceira observação é que há respeitáveis fundamentos para a decisão. A discussão, em resumo, versava sobre a necessidade de manter a coisa julgada para determinados contribuintes ou de privilegiar a igualdade entre todos. É recomendável que a empresa A não pague determinado tributo, pois ajuizou uma ação encerrada antes da decisão final do Supremo, enquanto a empresa B, do mesmo setor, por ter demorado um pouco mais a ingressar com a ação, pague esse tributo? Nesse caso, o STF entendeu que suas decisões devem ser observadas, de maneira uniforme, por todos os contribuintes, sendo inaceitável a manutenção no mundo jurídico de decisão que contrarie a proclamação final sobre determinada interpretação, evitando que uns tenham mais direitos que outros.
O quarto ponto de destaque diz respeito à possível modulação desse entendimento. Os ministros analisaram se essa decisão deveria produzir efeitos apenas para o futuro ou também para o passado. Nesse particular, a Corte decidiu não modular, de modo que, respeitado o prazo decadencial, todos devem fazer o recolhimento de forma retroativa. O que fazer com a multa e os juros é um assunto que certamente ainda dará pano para manga. Seria atípico sancionar o contribuinte por ele ter seguido decisão judicial definitiva.
Findo o julgamento, o ministro Luís Roberto Barroso (que mudou, quanto à modulação, seu voto proferido em 2022) equiparou o contribuinte que confiou na coisa julgada a quem vai a um cassino e faz uma aposta. O ministro Luiz Fux lembrou que, na catedral do Direito, a coisa julgada deveria estar no altar-mor. Quem sabe será ainda possível achar um meio-termo entre o cassino e a igreja.
Escritório Aliado: Bichara Advogados para O Globo