Por Gabriel Trindade dos Santos
A comunidade internacional, nela incluída a sociedade brasileira, foi surpreendida pela pandemia do novo coronavírus – Covid-19, a qual alterou radicalmente as relações sociais e atividades das pessoas físicas e jurídicas.
Diante da gravidade dos acontecimentos referentes ao surto, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou em 11.03.2020 estado de pandemia, recomendando uma série de medidas aos países afetados pelo vírus, entre as quais a interrupção de atividades sociais e econômicas, o isolamento social, o desestímulo às reuniões presenciais, entre outras para evitar a aglomeração de pessoas.
Em 06.02.2020, houve a publicação da denominada Lei da Covid-19 (Lei nº 13.979/2020), que estabeleceu medidas destinadas ao enfrentamento da situação emergencial, como a quarentena e o isolamento.
Posteriormente, o Congresso Nacional publicou o Decreto Legislativo n° 06, de 20.03.2020, reconhecendo estado de calamidade pública no território nacional em razão dos efeitos nefastos da pandemia.
No mesmo sentido, governadores e prefeitos decretaram medidas de restrição de circulação de pessoas e de comércio, para enfrentamento da emergência de saúde pública.
Esse cenário imprevisível de grave instabilidade impactou duramente as relações sociais e comerciais, atingindo todos os ramos do Direito, sem que a legislação estivesse adequadamente preparada.
Assim, objetivando conferir maior segurança jurídica a esse momento de caos, foi publicada a Lei nº. 14.010, de 10.06.2020, a qual estabelece o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET) no período da pandemia do coronavírus (Covid-19).
Importa elucidar que a Lei do RJET não modifica nenhuma legislação anterior, tendo em vista que não possui o escopo de se perpetuar no tempo, mas tão somente suspender normas incompatíveis com o período excepcional instaurado pelo Covid-19. É o que dispõe o artigo 2º da Lei: A suspensão da aplicação de normas referidas nesta Lei não implica sua revogação ou alteração.
Ademais, referido diploma emergencial possui marco temporal preciso, com início de vigência em 20.03.2020, data em que o Congresso Nacional reconheceu a notória desordem ocasionada pela pandemia ao publicar o Decreto Legislativo nº. 6 (art. 1º, parágrafo único, da Lei nº. 14.010/2020).
Ressalta-se que o referido diploma emergencial esforça-se para socorrer várias áreas do Direito Civil, a saber: Parte Geral (Prescrição e Decadência), Sucessões (Prazos de Inventários), Família (Prisão civil domiciliar), Pessoas Jurídicas (Assembleias virtuais), Direito das Coisas (Condomínio Edilício e Usucapião), bem como Código de Defesa do Consumidor e Lei Geral de Proteção de Dados.
Em síntese, o Regime Emergencial suspendeu, pela atual redação, de 10.06.2020 até 30.10.2020, os seguintes institutos legais:
- Prazos prescricionais e decadenciais, a partir da publicação da Lei;
- Direito de arrependimento do consumidor previsto no artigo 49 do CDC, na hipótese de entrega domiciliar (delivery) de produtos perecíveis ou de consumo imediato e de medicamentos;
- Prazos de aquisição para fins de usucapião;
- As infrações à ordem econômica previstas pela Lei 12.529 nos incisos XV e XVII do §3º do art. 36, para atos praticados e com vigência de 20.03.2020 até 30.10.2020 ou enquanto durar o estado de calamidade pública, quais sejam:
XV – vender mercadoria ou prestar serviços injustificadamente abaixo do preço de custo;
XVII – cessar parcial ou totalmente as atividades da empresa sem justa causa comprovada;
- Prazo para abertura de processo de inventário (art. 611 CPC) das sucessões abertas a partir de 01.02.2020 terá como termo inicial o dia 30.10.2020;
- Ademais, o prazo de 12 meses para conclusão do processo de inventário (art. 611 CPC) iniciado antes de 1º de fevereiro, também fica suspenso até 30.10.2020;
Por outro lado, o RJET instituiu, ainda, as seguintes medidas:
- Possibilidade de que pessoas jurídicas de direito privado realizem assembleia geral por meios eletrônicos, tendo a manifestação e voto dos participantes por tais meios, o mesmo efeito da assinatura presencial;
- Tal possibilidade também foi concedida às assembleias condominiais;
- Todavia, não sendo possível a realização da assembleia e vencendo o mandato do síndico a partir de 20.03.2020, este fica prorrogado até 30.10.2020;
- Prisões civis por dívida alimentícia serão cumpridas exclusivamente em regime domiciliar;
- O contrato associativo, consórcio ou join venture entre duas ou mais empresas, durante o período das suspensões trazidas na Lei, não mais constituem ato de concentração, regulado pelo art. 90, IV e art. 88 da Lei 12.529, desde que necessários ao combate ou à mitigação das consequências decorrentes da pandemia do coronavírus (Covid-19), podendo ser objeto de investigação caso contrário;
A Lei 14.010/2020 trouxe ainda alteração à Lei Geral de Proteção de Dados, retardando a vigência das sanções administrativas previstas no diploma para 01.08.2021. De tal modo, a norma passa a contar com três períodos de vacatio legis distintos, a depender do dispositivo, uma das quais em decorrência da Medida Provisória nº 959, que ainda precisa ser aprovada pelo Congresso.
A redação encaminhada para sanção presidencial do RJET previa, ainda, diversos institutos que acabaram vetados, entre os quais a não concessão de liminar para desocupação de imóvel urbano em ações de despejo, a redução em 15% da retenção de valor em serviços de transporte de passageiros pelas empresas, repassando tais valores aos motoristas, bem como maiores poderes ao síndico a fim de restringir o uso das áreas comuns. Tais vetos ainda serão objeto de análise do Congresso Nacional.
Vários juristas e instituições posicionaram-se sobre os dispositivos do RJET, tanto os sancionados quanto os vetados pelo Presidente da República. Pablo Stolze e Carlos Eduardo Elias de Oliveira veem com bons olhos a disposição acerca da prisão civil, que em sua visão está alinhada com as recentes decisões judiciais, além de justificar-se “diante do perigo de contágio da grave doença viral, na perspectiva do princípio maior da dignidade da pessoa humana, sem que haja prejuízo à exigibilidade da obrigação inadimplida”¹.
Já no que se refere ao veto ao dispositivo que impactava as ações de despejo, para Alexandre Matias a medida traria “grave insegurança jurídica para o mercado imobiliário”² onerando exclusivamente os locadores. Em sentido contrário, Guilherme Henrique Lima Reinig, Daniel Amaral Carnaúba e Daniel Pires Novais Dias opinam que a suspensão da medida extrema é justificada pelas relevantes razões de saúde pública, destacando que “além de não afetar a exigibilidade judicial do crédito deste, o art. 9º do PL n. 1.179/2020 não altera a regra da Lei n. 8.245/91 que permite a execução provisória da sentença independentemente de caução (art. 64)³”.
De qualquer forma, a despeito do veto presidencial a alguns pontos da Lei, esta surge como resposta a situação imprevisível, excepcional e emergencial instaurada pelo Covid-19, cumprindo o importantíssimo papel de pacificar as relações jurídicas desestabilizadas pela pandemia.
¹ REINIG. Guilherme Henrique Lima, CARNAÚBA, Daniel Amaral e DIAS, Daniel Pires Novais. Despejo liminar e coronavírus: críticas ao veto ao artigo 9º do PL 1.179/2020, publicado em 18.06.2020 na Revista Consultor Jurídico. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-jun-18/direito-civil-atual-criticas-razoes-veto-artigo-pl-11792020>
² As principais mudanças (e vetos) do novo Regime Jurídico Emergencial e Transitório, por Guilherme Mendes. Disponível em <https://br.lexlatin.com/portal/reportagens/principais-mudancas-e-vetos-do-novo-regime-juridico-emergencial-e-transitorio.>
³ STOLZE, Carlos e OLIVEIRA, Eduardo Elias de. COMENTÁRIOS À LEI DA PANDEMIA (Lei nº 14.010, de 10 de junho de 2020 – RJET). Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/46412/comentarios-a-lei-da-pandemia-lei-n-14-010-de-10-de-junho-de-2020-rjet/3>
Fonte: Cerizze