Por Fabrício Loureiro de Carvalho Freitas
A Sociedade Anônima foi por muito tempo compreendida como uma Sociedade organizada com o intuito pecuniae, constituída tendo como foco principal a formação do capital e pouca relevância de ordem pessoal com aqueles que compõe o quadro de acionistas. A realidade brasileira revelou ao longo do tempo que a Sociedade Anônima é, em regra, de capital fechado, de médio e pequeno porte, e tem nas pessoas dos acionistas o elemento preponderante para a sua formação e desempenho, o que a torna detentora de características até então compreendidas como sendo exclusivamente das sociedades contratuais (sociedade limitada, sociedade de pessoas, etc).
A aplicação do instituto da dissolução parcial às Sociedades Anônimas ganhou novos contornos no ano de 2015 com a publicação da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (“Lei no 13.105/2015”), que trouxe previsão expressa sobre a matéria no Artigo 599 ao estabelecer como pré-requisito para aplicação do instituto a demonstração de que a companhia fechada não pode preencher o seu fim. O principal fundamento da nova disciplina, que criou alternativa à dissolução total, está na preservação empresa, como entidade capaz de gerar empregos, arrecadar tributos e contribuir para o desenvolvimento da comunidade.
Art. 599. A ação de dissolução parcial de sociedade pode ter por objeto:
I – a resolução da sociedade empresária contratual ou simples em relação ao sócio falecido, excluído ou que exerceu o direito de retirada ou recesso; e
II – a apuração dos haveres do sócio falecido, excluído ou que exerceu o
direito de retirada ou recesso; ou
III – somente a resolução ou a apuração de haveres.
§ 1º […].
§ 2º A ação de dissolução parcial de sociedade pode ter também por
objeto a sociedade anônima de capital fechado quando demonstrado,
por acionista ou acionistas que representem cinco por cento ou mais do
capital social, que não pode preencher o seu fim. (Lei nº 13.105, de 16 de
março de 2015). (Grifo nosso).
Ocorre que, antes mesmo do novo tratamento legal conferido ao tema, o egrégio Superior Tribunal de Justiça (“STJ”) já tecia análises sobre a realidade e as características das estruturas das Sociedades Anônimas e reconhecia a aplicabilidade da dissolução parcial ao tipo. Não à toa, diz-se que as disposições do Artigo 599 da Lei nº 13.105/2015 tem origem na construção jurisprudencial.
O julgamento do EREsp 111.294/PR no ano de 2007, marca o reconhecimento da dissolução parcial de Sociedade Anônima de capital fechado pelo STJ e direciona a análise do tema ao vínculo subjetivo existente entre os acionistas por ocasião da constituição da sociedade e ao fato de que o desentendimento entre os acionistas pode inviabilizar o desempenho das operações sociais e impedir que a companhia realize o seu fim. A compreensão de que o elemento pessoal é relevante para o desempenho da Sociedade Anônima de capital fechado foi associada pelo STJ ao princípio da preservação da empresa para concluir que a regra legal de dissolução total vigente na época não atendia os valores sociais da companhia atrelados à geração de emprego, ao pagamento de tributos e ao desenvolvimento econômico do país, e que, portanto, deveria ser reconhecida a compatibilidade entre o instituto da dissolução parcial e as Sociedades Anônimas de capital fechado. Abaixo segue a ementa do EREsp 111.294/PR:
EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA. […]. MÉRITO. DIREITO COMERCIAL. SOCIEDADE ANÔNIMA. GRUPO FAMILIAR. INEXISTÊNCIA DE LUCROS E DISTRIBUIÇÃO DE DIVIDENDOS HÁ VÁRIOS ANOS. QUEBRA DA AFFECTIO SOCIETATIS. DISSOLUÇÃO PARCIAL. POSSIBILIDADE. I –[…].
III – É inquestionável que as sociedades anônimas são sociedades de capital (intuito pecuniae), próprio às grandes empresas, em que as pessoas dos sócios não têm papel preponderante. Contudo, a realidade da economia brasileira revela a existência, em sua grande maioria, de sociedades anônimas de médio e pequeno porte, em regra, de capital fechado, que concentram na pessoa de seus sócios um de seus elementos preponderantes, como só acontece com as sociedades ditas familiares, cujas ações circulam entre os seus membros, e que são, por isso, constituídas intuito personae. Nelas, o fator dominante em sua formação é a afinidade e identificação pessoal entre os acionistas, marcadas pela confiança mútua. Em tais circunstâncias, muitas vezes, o que se tem, na prática, é uma sociedade limitada travestida de sociedade anônima, sendo, por conseguinte, equivocado querer generalizar as sociedades anônimas em um único grupo, com características rígidas e bem definidas. Em casos que tais, porquanto reconhecida a existência da affectio societatis como fator preponderante na constituição da empresa, não pode tal circunstância ser desconsiderada por ocasião de sua dissolução. Do contrário, e de que é exemplo a hipótese em tela, a ruptura da affectio societatis representa verdadeiro impedimento a que a companhia continue a realizar o seu fim, com a obtenção de lucros e distribuição de dividendos, em consonância com o artigo 206, II, “b”, da Lei no 6.404/76, já que dificilmente pode prosperar uma sociedade em que a confiança, a harmonia, a fidelidade e o respeito mútuo entre os seus sócios tenham sido rompidos. A regra da dissolução total, nessas hipóteses, em nada aproveitaria aos valores sociais envolvidos, no que diz respeito à preservação de empregos, arrecadação de tributos e desenvolvimento econômico do país. À luz de tais razões, o rigorismo legislativo deve ceder lugar ao princípio da preservação da empresa, preocupação, inclusive, da nova Lei de Falências – Lei no 11.101/05, que substituiu o Decreto – lei nº 7.661/45, então vigente, devendo-se permitir, pois, a dissolução parcial, com a retirada dos sócios dissidentes, após a apuração de seus haveres em função do valor real do ativo e passivo. A solução é a que melhor concilia o interesse individual dos acionistas retirantes com o princípio da preservação da sociedade e sua utilidade social, para evitar a descontinuidade da empresa, que poderá prosseguir com os sócios remanescentes. Embargos de divergência improvidos, após rejeitadas as preliminares (Embargos de Divergência em RESP no 111.294 – PR. Rel. Min. Castro Filho. DJ: 10/09/2007) (Grifo nosso).
Nos anos de 2008 e 2012, o STJ sedimentou por meio do EREsp 419.174/SP e do EREsp 1.079.763/SP o entendimento de que é passível a dissolução parcial de Sociedade Anônima de capital fechado com base na quebra da affectio societatis. Conforme entendimento exarado no EREsp 419.174/SP, a affectio societatis é elemento essencial para as Sociedades Anônimas de capital fechado, “[…] sem o qual presume-se que o clima beligerante entre os acionistas atua contra a preservação da empresa e torna-se obstáculo a consecução de seu objeto social”.]¹
Ainda no ano de 2012, no RESP 917.531/RS, o STJ posicionou-se no sentido de que a dissolução parcial é aplicada à Sociedade Anônima fechada “[…] nas hipóteses em que, tendo sido a affectio societatis um fator preponderante na criação da sociedade, tenha ela se desvanecido, [..] de forma a configurar que a sociedade não consegue alcançar a sua finalidade”. De acordo com a análise feita pelo tribunal, o reconhecimento da dissolução parcial não depende da constatação de inexistência de lucros ou da falta de distribuição de dividendos da companhia, quanto menos do fato de tratar-se de uma sociedade familiar ou de sociedade com composição societária reduzida. O pressuposto determinante para aplicação da disciplina, segundo o STJ, está na constatação da affectio societatis caracterizada pela “[…] existência de afinidade e identificação pessoal entre os acionistas, marcadas pela confiança mútua […]” e, por vezes, identificada na existência de cláusulas estatutárias restritivas à livre circulação das ações.²
No ano de 2017, já na vigência da Lei no 13.105/2015, o STJ, nos termos do RESP 1.400.264/RS, exibe o entendimento de que a ruptura da confiança recíproca entre os acionistas de Sociedade Anônima de capital fechado representa quebra da affectio societatis suficiente para impossibilitar a sociedade cumprir o seu fim, senão vejamos.³
Assim, a reunião de acionistas em torno de interesses convergentes torna a harmonia entre os sócios imprescindível à operacionalidade dessas empresas. Em outras palavras, em se tratando de companhia familiar, ou sociedade formada a partir da nítida convergência pessoal dos sócios, o regular desenvolvimento da atividade empresarial se mostra umbilicalmente atrelado à manutenção da affectio societatis, isto é, na confiança recíproca entre os sócios.
Desse modo, o desentendimento entre os acionistas, conforme o grau, poderá inviabilizar o negócio, equiparando a ruptura da affectio societatis à causa suficiente para a dissolução, prevista no art. 206, II, “b”, da Lei no 6.404/76 – LSA, qual seja, a impossibilidade de a sociedade cumprir seu fim. (RESP 1.400.264/RS. Rel. Min. Nancy Andrighi. DJe: 30/10/2017. p. 11). (Grifo nosso).
Ao longo dos anos, portanto, o STJ construiu posicionamento no sentido de que a quebra da affectio societatis é elemento que impede que a Sociedade Anônima de capital fechado alcance o seu fim. De acordo com os posicionamentos exarados pelo tribunal, a affectio societatis adota contornos de elemento essencial para a constituição e para o funcionamento dessas sociedades, ao ponto de o seu rompimento ser compreendido como impedimento para que a companhia realize o seu fim, considerado como sendo a obtenção de lucros e a distribuição de dividendos.4
Ao desenvolver o conceito da affectio societatis, o STJ exaltou o vínculo subjetivo existente entre os acionistas (a afinidade, a identificação pessoal e a confiança mútua) e indicou que a Sociedade Anônima de capital fechado dificilmente pode prosperar com o rompimento da confiança, da harmonia, da fidelidade e do respeito mútuo entre os acionistas.5
De outro lado, autores como Erasmo Valladão Azevedo e Novaes França, sustentam que a affectio societatis é conceito descritivo que, quando utilizado isoladamente, é incapaz de fundamentar o não preenchimento do fim da sociedade.6
Para justificar a aplicação da dissolução parcial pelo não preenchimento do fim, o autor sustenta que se deve analisar e identificar no caso concreto o nível de intensidade e de quebra dos deveres de colaboração e lealdade dos acionistas no desempenho das atividades e no alcance do resultado da companhia.7
Do exposto, deve-se entender que, segundo entendimento do STJ, o instituto da dissolução parcial é aplicável às Sociedades Anônimas de capital fechado que têm na pessoa dos acionistas o elemento preponderante para o desempenho das atividades sociais e o alcance e o rateio dos resultados, sempre que constatada a quebra da affectio societatis. As contribuições da doutrina para a compreensão da matéria sinalizam que é conveniente apresentar o pedido de reconhecimento da dissolução parcial de Sociedade Anônima de capital fechado pela quebra da affectio societatis combinado com a demonstração de violação ou falha dos deveres de lealdade e colaboração dos acionistas em medida capaz de impedir a realização do fim social.
¹ Embargos de Divergência em RESP no 419.174/SP. Rel. Min. Aldir Passarinho Junior. DJ: 04/08/2008; e EREsp 1.079.763/SP. Rel. Min. SidneiBeneti. DJ: 06/09/2012.
² RESP 917.531/RS. Rel. Min. Luis Felipe Salomão. DJ: 01/02/2012.
³ RESP 1.400.264/RS. Rel. Min. Nancy Andrighi. DJ: 30/10/2017.
4 Parte da doutrina adota o mesmo posicionamento: CAMPINHO, Sergio. A dissolução da sociedade anônima por impossibilidade de preenchimento de seu fim. Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, n. 3, p. 85-90, 1995. Apud Carlos Klein Zanini. A Dissolução Judicial da Sociedade Anônima. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 226.
5 EREsp 1.079.763/SP. Rel. Min. Sidnei Beneti. DJ: 06/09/2012. p. 7.
6 Erasmo Valladão Azevedo e Novaes França identifica que o termo fim da sociedade empresária significa a atividade por ela desempenhada e a partilha entre seus membros dos resultados alcançados com a atividade. FRANÇA, Erasmo Valladão Azevedo e Novaes. Affectio Societatis e conceito de “Fim Social”. In: Temas de Direito Societário, Falimentar e Teoria da Empresa. São Paulo: Malheiros Editores Ltda., 2009. p. 59
7 FRANÇA, Erasmo Valladão Azevedo e Novaes. Affectio Societatis e conceito de “Fim Social”. In: Temas de Direito Societário, Falimentar e Teoria da Empresa. São Paulo: Malheiros Editores Ltda., 2009. p. 27-68.