Estão pautados para esta quarta-feira (13/-2), no Supremo Tribunal Federal (STF), dois julgamentos voltados ao reconhecimento da criminalização específica da homofobia e da transfobia, isto é, de atos motivados por preconceito ou discriminação decorrentes da orientação sexual e/ou identidade de gênero. Seja colocando em mora o Congresso Nacional para a aprovação desta lei, seja pela aplicação subsidiária da lei que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor (Lei nº 7.716/89) para os atos homofóbicos e transfóbicos.
Este será um daqueles julgamentos que tensionam o princípio da divisão funcional dos Poderes. Isso porque, caso o STF dê provimento aos pedidos principais, estará supostamente interferindo em funções próprias do Legislativo. Afinal, das duas uma: ou irá alargar a interpretação da Lei 7.716/89, para ali fazer inserir a “orientação sexual” e “identidade de gênero”, ou irá colocar os legisladores em mora para que produzam uma lei neste sentido.
Por outro lado, é função do Judiciário – e do STF, em especial – dar sentido ao texto constitucional e exercer o controle de constitucionalidade. Tal perspectiva se torna desafiadora ao constatar que, atualmente, as constituições estão cada vez mais complexas, não funcionando mais como meras reguladoras negativas da relação entre Estado e cidadãos, mas assumindo papéis centrais nos ordenamentos jurídicos, e também procurando concretizar os direitos fundamentais dos cidadãos.
De fato, a Constituição brasileira, por exemplo, determina que a “lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais” (art. 5º, XLI). E a homofobia e transfobia configuram violações a direitos e liberdades fundamentais, ligadas à livre orientação sexual, à livre identidade de gênero e mesmo ao livre desenvolvimento da personalidade.
Para garantir este princípio constitucional, caberá ao STF proceder a uma construção normativa, já que o ordenamento positivo atual não dispõe de lei que concretize tal proteção específica. O que não quer dizer que irá usurpar da competência legislativa, já que estará atuando nos termos constitucionais.
Com efeito, em uma resolução do dia 14 de fevereiro de 1973, o Tribunal Constitucional Federal alemão tratou de sua função de “desenvolvimento do direito através do encontro criativo do direito”, sob o fundamento de que o Direito não equivale à lei, porque esta nem sempre possui solução para os casos colocados diante do judiciário ou, ainda, porque pode apresentar-se desatualizada ou em conflito com outras normas do ordenamento jurídico e “é a tarefa da jurisdição encontrá-lo e realizá-lo em suas decisões” (BVerGE 34, 269, p. 304 apud HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade, vol. I, p. 303).
A questão que se coloca, portanto, é: de que modo a prática da interpretação que procede construtivamente pode operar no âmbito da divisão de poderes do Estado de Direito, sem que a Justiça lance mão de competências legisladoras? Isto é, diante do crescente potencial criativo da jurisdição constitucional, exige-se uma elaboração consistente em torno dos limites dessa jurisdição, de forma a manter o equilíbrio entre os Poderes e garantir a segurança jurídica do ordenamento.
O limite, seguindo a linha defendida por Habermas (em Direito e Democracia: entre facticidade e validade, vols. I e II) está no princípio democrático. Em suma, os Tribunais Constitucionais devem atuar no sentido de proteger o sistema de direitos que possibilita a autonomia privada e pública de todas as pessoas. Pois, assim agindo, eles garantem as qualidades discursivas necessárias para o procedimento político-democrático.
Não há dúvidas de que o preconceito em razão da orientação sexual e identidade de gênero é uma realidade nacional que produz violência e que inviabiliza o exercício pleno da liberdade. Nesse sentido, tal situação obstaculiza o próprio procedimento democrático, na medida em que exclui de sua esfera de proteção um grupo social vulnerável socialmente.
Assim, o Judiciário tem o dever de atuar para retirar esse obstáculo, de reconhecer e fazer valer o direito à livre orientação sexual e identidade de gênero, e, assim, exercer seu papel fundamental que, em última instância, é o de defender o sistema de direitos que possibilita a autonomia pública e privada de todos os cidadãos e, portanto, garantir a democracia. Isso porque a ausência de um quadro normativo de proteção explícita à população LGBTQ contribui para a perpetuação da homofobia e da transfobia.
Por Clara Moura Masiero