Dirceu P. de Santa Rosa
Ainda que o chamado “Direito Digital” seja considerado por muitos como uma nova, e bastante peculiar, área de prática na advocacia, cada vez mais a evolução tecnológica traz desafios bastante complexos que o Direito como um todo necessita enfrentar. Um dos mais recentes, com certeza, é como lidar com o exponencial aumento do interesse pelo uso e investimento em “moedas virtuais” no Brasil, sendo a mais famosa delas o Bitcoin.
Bitcoin, a principal das chamadas “moedas virtuais”, é tratada por muitos como uma evolução do dinheiro como conhecemos. Um ativo autônomo, cujo preço e flutuação não dependem de moedas como o dólar norte-americano ou o Euro, e nem de intervenções governamentais. O Bitcoin é relativamente fácil de usar e bastante atraente como meio de pagamento e investimento. Afinal, comprar e vender Bitcoins pode ser feito por via eletrônica, sem barreiras territoriais ou fiscais ou a necessidade de bancos ou intermediários financeiros, sendo útil até para os chamados “micropagamentos”. E por ser baseado em uma arquitetura de dados descentralizada, baseada na tecnologia que denominamos Blockchain, o Bitcoin pode ser negociado de forma discreta, mesmo que não puramente anônima, fora do alcance direto das autoridades fiscais. Por isso mesmo, a sua utilização é acompanhada de incertezas e riscos, dada a complexidade do tema e o questionamento se é necessária ou não sua regulação.
Investir em Bitcoins tem sido uma atividade muito lucrativa, pelo menos até outubro de 2017. Cada Bitcoin custa hoje em torno de R$ 17.000,00 (dezessete mil reais), com um crescimento de mais de 300% se comparado com o valor da mesma unidade de Bitcoin em 2015. Neste diapasão, surgiram no Brasil diversas empresas de Internet que lidam apenas com moedas virtuais, sem nenhuma ligação a bancos ou corretoras de valores. Tais empresas agem tal como uma depositária de valores, e podem ser utilizadas como veículo para que o consumidor adquira unidades ou frações de Bitcoin e possam revende-las quando conveniente, sendo que tais operações não são reguladas pelo Banco Central do Brasil.
Bitcoin e outras “moedas virtuais” representam hoje um desafio para os reguladores dos sistemas financeiro e bancário. No Brasil, por exemplo, não existe regulação específica para moedas virtuais. Apenas o Banco Central do Brasil emitiu um comunicado, em 2014 ( Comunicado no. 25.306/14 ), alertando sobre os riscos decorrentes da aquisição das chamadas “moedas virtuais” e da realização de transações com elas, visto que nenhuma delas é garantida por uma autoridade monetária formal.
É importante notar que, na legislação brasileira, já existe regulamentação sobre as chamadas “moedas eletrônicas”. A regulação dos chamados arranjos de pagamento (Lei 12.865, de 9 de outubro de 2013) define como “moeda eletrônica” apenas aquela devidamente lastreada por moeda nacional, e emitida por uma autoridade monetária central, o que permite ao usuário final efetuar uma transação de pagamento em moeda nacional. Ou seja, tem lastro em moeda corrente.
Assim sendo, o Bitcoin, por ser uma “moeda virtual” e não se enquadrar nestas características, fica totalmente de fora da regulação específica do Banco Central do Brasil sobre as “moedas eletrônicas”.
Para tentar regular o tema, a Câmara dos Deputados instalou uma Comissão Especial e vem realizando audiência públicas para debater o Projeto de Lei 2303/2015, de autoria do Deputado Aureo (SD/RJ). Referido PL dispõe sobre a inclusão das “moedas virtuais”, bem como dos programas de milhagem aérea, na definição de “arranjos de pagamento”, colocando ambos sob a supervisão do Banco Central. Se aprovada como Lei, o Brasil passaria não apenas a reconhecer as moedas virtuais, como o Bitcoin, como meios de pagamento oficiais, mas também demandaria que todas as empresas que auxiliam investidores no brasil, deveriam ser e estipularia supervisão do Banco Central.
Uma evolução sobre o tema, alguns podem dizer. Mas nem todos os entusiastas do Bitcoin concordam que a regulação estatal seja útil para os investidores que buscam lucratividade e discrição em seus investimentos. E que as “moedas virtuais” e os planos de milhagem aérea não devam ser objeto de supervisão do Banco Central, pois o texto do PL 2303/2015 deixa bastante a desejar.
Temos uma opinião um tanto parecida: No momento atual, uma regulação que desse segurança para os investidores seria interessante, ainda que o PL 2303/2015 seja um tanto simplório, e inclua os programas de milhagem e as “milhas” (isso sim uma monstruosidade legislativa). Assim, mesmo quem deseja investir pequenas economias no Bitcoin teria um nível de segurança adequado ao fazê-lo com empresas brasileiras, considerando que as mesmas teriam seu funcionamento supervisionado pelo Banco Central, e prestariam aos seus clientes garantias compatíveis com as de instituições financeiras tradicionais. Para um país que já presenciou escândalos financeiros como o “Boi Gordo” e o “Papa Tudo”, algum nível de regulação não é o pior cenário.
O fato é que não se pode permitir que o mercado de “moedas virtuais” no Brasil permaneça em um vácuo legislativo, sujeito até mesmo a empresários inescrupulosos que tentem se aproveitar da popularização das “moedas virtuais”. Cabe ao Legislativo tomar a iniciativa e propor à sociedade uma boa regulação, mais densa e eficiente que o PL 2303/2015. Afinal, o momento é propício para debatermos uma legislação que reconheça as “moedas virtuais”, sem prejudicar seu uso livre e disseminação como meio de pagamento e sem equipará-lo aos programas de milhagem aérea.
Na medida que as “moedas virtuais” como o Bitcoin tem como sua principal característica não depender de instituições financeiras e autoridades monetárias, e sua característica fundamental é se “descolar” dos entraves regulatórios, as “moedas virtuais” , ou ao menos as empresas que desejam atuar neste mercado, precisam de um mínimo de regulação específica, ainda que para preservar os consumidores e pequenos investidores. Porém que esta regulação não impeça que as empresas sérias, com níveis de compliance adequados, continuem atuando neste mercado
A regulamentação por si só se faz necessária, ao menos para a repressão de eventuais práticas criminosas. De fato, também as autoridades criminais e fiscais teriam algumas vantagens com a regulação dos Bitcoins. Isso lhes permitiria melhor investigar situações em que as “moedas virtuais” sejam inadvertidamente utilizadas para atividades ilícitas, inclusive crimes de natureza financeira como a lavagem de dinheiro, sendo certo que, ao menos no Bitcoin e nas principais “moedas virtuais” disponíveis no mercado, o nível de transparência das transações já dificulta a utilização das mesmas para a prática de delitos.
E na medida em que as iniciativas de regulação estatal avançam no Brasil, é altamente recomendável que as empresas interessadas em atuar no mercado de “moedas virtuais”, em especial o Bitcoin, busquem assessoria jurídica especializada, para que estejam preparadas quando a regulação estatal chegar. Assessoria esta que não se limita aos aspectos da regulação de serviços financeiros, mas também envolve a conformidade das empresas com outras leis aplicáveis às transações via Internet, tais como o já consolidado Marco Civil da Internet, e a observância de cuidados com a segurança e utilização dos dados pessoais dos clientes. Tudo isso facilita a transparência das atividades destas empresas e faz com que os riscos para os consumidores, e investidores, seja devidamente mitigado.