A publicação da Lei 13.467/2017, na esteira de um conjunto de reconfigurações sócio-político-econômicas, trouxe significativa mudança na estrutura do direito do trabalho e do direito processual do trabalho, aparentemente, flertando com o direito privado. Sem realizar qualquer julgamento de mérito sobre a “reforma” propriamente dita, questionamos se, aceitando a existência desta (até que impasses sobre a constitucionalidade de determinadas previsões sejam julgadas) e, principalmente da valorização do sistema negociado, não seria pertinente, com urgência, nos debruçarmos sobre a boa-fé e sua efetivação.
Obviamente que a boa-fé sempre foi essencial aos relacionamentos jurídicos de modo geral (e por isso mesmo não seria perda de tempo a discussão sobre assunto, independentemente da manutenção
ou não das regras trazidas pela reforma), mas com a importância inegável das negociações – utilizamos a expressão negociação simplesmente, pois, no Brasil, é possível que determinados empregados em determinadas circunstâncias negociem situações específicas com os empregadores sem a
intervenção do sindicato, e, a princípio essas regras tenham prevalência sobre a norma legal (Art. 444, parágrafo único da CLT combinado com art. 611-A da CLT) – nas relações trabalhistas, afastando a prevalência da norma mais favorável (princípio balizador do direito do trabalho até então), entendemos que há necessidade de se regular a operacionalização da boa-fé de forma concreta.
O princípio da norma mais favorável foi classicamente concebido como a diretriz para a solução do conflito entre normas, criando-se uma hierarquia
dinâmica pela qual prevalecia a norma mais benéfica ao trabalhador.
Em outras palavras, a criação de regras por meio da negociação coletiva deveria, de modo geral, ocorrer somente no sentido que lhe é mais favorável. Em casos excepcionais poderiam ocorrer no sentido menos favorável, considerando o permissivo inscrito nos incisos VI, XIII e XIV do artigo 7o da Constituição Federal.
Todavia, com o advento da Lei no 13.467/2017 e do novel art. 611-A da CLT, foram previstas diversas matérias sobre as quais as fontes negociais podem prevalecer sobre a lei, inclusive no sentido menos favorável, suprimindo ou
reduzindo direitos.
Portanto, essa alteração tornou necessária a rediscussão do princípio até então utilizado para operacionalizar a relação entre a lei e os instrumentos
da negociação coletiva, bem como de uma forma concreta e segura de efetivar essas negociações. O que, ao nosso ver, torna a discussão sobre a boa-fé e sua operacionalização essencial.
Isso não é novidade em outros ordenamentos jurídicos. Estados
Unidos, Portugal, Nova Zelândia, dentre outros, dispõem especificamente como as partes devem proceder mediante uma negociação coletiva, quais assuntos devem ser negociados, quais assuntos não devem ser negociados, mas, principalmente, estabelecem o dever de transparência, não admitindo a barganha e o blefe impunemente.
Podemos traçar um paralelo com o direito norte-americano (guardadas as proporções históricas e sociais que jamais devem ser esquecidas nesse tipo de comparação, mas que no caso tratado podem servir de inspiração), o qual prevê normas de suporte à negociação coletiva que coíbem a má-fé. Ainda, há a Câmara Nacional de Relações de Trabalho (National Labor Relations Board – NLRB), agência federal independente estabelecida para compelir a observância do Ato Nacional das Relações de Trabalho (Labor Management Relations Act), com poder para conduzir eleições de aceitação dos empregados a representação de determinado sindicato, e para investigar e sanar práticas trabalhistas desleais.
A obrigação de negociar está atrelada à obrigação de fazê-lo de boa-fé. Por exemplo, realizar a negociação em período de tempo razoável, sem atrasos
injustificados para manifestar-se sobre propostas, apresentar negociadores com poderes de representação, não apresentar exigências novas e diversas das anteriormente formuladas, não retirar proposta anteriormente apresentada ou oferecer proposta pior, agir com transparência, fundamentando negativas de propostas ou contrapropostas e apresentando, se for exigido, documentos pertinentes para comprovação das alegações.
Assim, a boa-fé deve ser tratada como um princípio geral, que institui regras de conduta a que todos os sujeitos precisam ajustar-se, adotando um
comportamento leal em todas as fases do processo negocial.
O dever de agir segundo a boa-fé deve existir também nas relações posteriores originadas no processo de negociação; nos direitos a serem exercidos e nas obrigações a serem cumpridas.
Também não olvidamos que a efetivação, de forma séria, da negociação esbarra na organização sindical brasileira, que possui tradições contratuais
pouco sedimentadas e de um modo geral conservadoras, além é claro da ausência de liberdade de organização.
A transformação das convenções e acordos coletivos, de função acessória para mecanismo importante das condições de trabalho, depende de muitos
fatores. Dentre esses, a regulamentação do art. 7o, I da Constituição Federal, mudanças culturais que indiquem a efetiva prática da negociação, passando pela reestruturação do modelo sindical e de representação dos trabalhadores na empresa, e, também, pela fixação de limites.
Não se trata, pois, de retirar o Estado das relações entre empregado e empregador a fim de criar um vazio normativo, mas de se outorgar espaço
para a autonomia coletiva regular as condições por meio da negociação com segurança, com regras claras e objetivas de comportamento.
Desse modo, ainda que pendentes questionamentos sobre os novos (ou apenas alteração dos) paradigmas do direito do trabalho e sobre a constitucionalidade de vários dispositivos da Lei 13.647/2017, urge que achemos soluções para a efetivação da boa-fé no nosso sistema jurídico. Não deixando de mencionar, é claro, a reformulação da estrutura sindical brasileira, para que só então se possa vislumbrar a plena valorização da autonomia coletiva, com ampla e segura atuação dos atores sociais.
Por Felipe Weber da Cruz e Teresa Porto da Silveira
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