Por Onofre Alves Batista Júnior e Paulo Roberto Coimbra Silva
A questão dos descontos atinentes ao auxílio-alimentação e ao vale-transporte parece suscitar dúvidas no seio da Administração Pública. A Receita Federal do Brasil (RFB), em soluções de consulta, em algumas ocasiões, fez um esforço para incluir essas verbas na base de cálculo das contribuições previdenciárias, em posicionamentos que se opõem ao que vem determinado nas leis e ao que vem sendo reiterado pelo Judiciário. Recentemente, foi a vez da Solução de Consulta Cosit no 58, de 23 de junho.
Antes de tudo, cabe gizar que a SC 58 é resposta a um questionamento de uma autarquia federal que foi obrigada por lei a realizar a retenção de 11%, a título de contribuição previdenciária sobre o valor pago em razão de contrato de prestação de serviços por meio de cessão de mão de obra. A análise da RFB, assim, apenas vincula o Fisco no que diz respeito ao regime forjado pelo artigo 31 da Lei 8.212/91.
Como consabido, as contribuições previdenciárias patronais (CPP), nos termos do artigo 195, I, “a”, da CR/88 recaem sobre a “folha de salários” e sobre os “rendimentos pagos ou creditados, a qualquer título” ao trabalhador”. Nesse sentido, o tributo incide apenas sobre a verba paga para o empregado como “contraprestação pelo trabalho”. Por outro giro, o artigo 201 exclui do conceito de salário os ganhos não habituais. Ficam, assim, afastadas da possibilidade de incidência da CPP as verbas de cunho não-remuneratório (por expressa determinação de lei, ou por se tratar de valores dispendidos “para o trabalho”).
Enfim, as verbas não remuneratórias não compõem o espectro competencial do legislador federal e sobre elas a União não pode fazer incidir a CPP (hipótese de não competência constitucional).
A Lei 8.212/91 definiu, em seu artigo 22, I, que a CPP deve incidir sobre o total das remunerações pagas (devidas ou creditadas) aos segurados destinadas a retribuir o trabalho. O §2º do artigo 22 determina expressamente que “não integram a remuneração” as parcelas de que trata o §9º do artigo 28. Procedendo-se a uma interpretação sistemática dos dispositivos, conclui-se que a base de cálculo da CPP é composta pelas verbas remuneratórias, não cabendo perquirir acerca da natureza das parcelas de que trata o §9º do artigo 28, porque essas verbas não são consideradas remuneração em razão de previsão expressa de lei (§2º do artigo 22). Seja porque o auxílio-alimentação ou o vale-transporte dizem respeito a verba não remuneratória, seja porque cumprem função extrafiscal relevante, o artigo 28, § 9º, “c” e “f” da Lei 8.212/91 exclui expressamente essas parcelas da remuneração, portanto, elas não fazem parte da base de cálculo tanto da CPP como da contribuição previdenciária do segurado (CPS).
Na realidade, trata-se de uma não competência de índole constitucional, não possuindo a União sequer poder de instituir tributos sobre vale-transporte ou sobre o auxílio-alimentação, porque o poder de tributar constitucionalmente outorgado se limita à possibilidade de fazer a tributação recair por sobre verbas remuneratórias (“folha de salários”). Mesmo se fosse admitida a competência constitucional, a tributação não poderia ocorrer porque se está diante de uma não incidência qualificada (isenção) determinada pela lei. Usando de maior rigor, pode-se dizer que se está perante uma situação de não incidência simples porque a base de cálculo vem expressamente determinada pela lei, deixando de fora as parcelas em comento (formatação legal da base de cálculo: artigo 22, I e §2º c/c/ artigo 28, §9º, “c” e “f”, da Lei 8.212/91).
Nessa sintonia, o artigo 457, §2º, da CLT determina que as importâncias, ainda que habituais, pagas a título de auxílio-alimentação, vedado seu pagamento em dinheiro, não integram a remuneração, não se incorporam ao contrato de trabalho e não constituem base de incidência de qualquer encargo trabalhista e previdenciário.
Em alguma medida, o empregado precisa estar saudável e bem alimentado para poder prestar o trabalho. Nesse sentido, em alguma porção, o auxílio-alimentação é verba paga “para o trabalho”, ou seja, para que o trabalhador esteja apto a laborar. Assim, não se pode negar certo matiz indenizatório da verba.
A propósito, a não incidência por sobre o auxílio-alimentação é medida consonante com o direito social garantido pelo artigo 6º da CR/88, uma vez que a alimentação é direito fundamental de índole constitucional e seu provimento exsurge como dever de Estado, que tem a incumbência de promovê-lo e garanti-lo. Nesse sentido, a não incidência sobre o valor total do auxílio-alimentação (valores suportados pelos empregados ou pelos empregadores) privilegia e realiza o direito fundamental à alimentação, viabilizando sua efetivação. Como ressabido, toda interpretação das leis infraconstitucionais deve privilegiar o atendimento dos direitos fundamentais, razão pela qual se impõe a necessidade de interpretar extensivamente as normas que favoreçam o atendimento ao direito social à saúde e à alimentação dos obreiros.
Embora o Poder Judiciário já tenha se manifestado em diversas ocasiões em sentido desfavorável à tributação da parcela, a RFB insiste em favorecer a incidência das contribuições previdenciárias. É nesse sentido que foi exarada a SC 58, buscando fazer incidir a CPP por sobre a parcela relativa ao auxílio-alimentação descontado do empregado.
Em síntese, a CLT e a Lei 8.212/91 afastam a tributação sobre o auxílio-alimentação, portanto, a verba não pode compor a base de cálculo da CPP em nenhuma hipótese. A propósito, a não incidência sobre a verba (suportada pelo patrão ou pelo empregado) privilegia direito fundamental à alimentação (elemento teleológico da interpretação).
Da mesma forma, garantir o transporte adequado do obreiro é medida que funciona para que possa o trabalhador bem desempenhar suas atribuições. Nesse sentido, a verba é paga, em geral, “para o trabalho”, ou seja, para que o trabalhador possa acessar o local de trabalho. Não se pode negar o cunho não remuneratório dessa verba. Nesse compasso, afastada a natureza remuneratória do vale-transporte, não existe competência constitucionalmente outorgada para fazer incidir a CPP ou a CPS.
A Lei 7.418/85 institui o vale-transporte e afasta, em seu artigo 2º, a natureza salarial da verba e a possibilidade de sua incorporação à remuneração, bem como estabelece que ela não constitui base de incidência de contribuição previdenciária. Assim, de forma inequívoca, a verba não compõe a base de cálculo da contribuição previdenciária. O artigo 458, §2º, da CLT, também estabelece que “não serão consideradas como salário as seguintes utilidades concedidas pelo empregador: (…); III – transporte destinado ao deslocamento para o trabalho e retorno, em percurso servido ou não por transporte público”. Em que pese leis diversas retirarem expressamente da base de cálculo da contribuição previdenciária o vale-transporte, o tributo não poderia incidir sobre essas verbas por ausência de competência constitucionalmente outorgada, porque elas não possuem natureza remuneratória.
A Emenda Constitucional 90/2015 deu nova redação ao artigo 6º da CRFB/88, introduzindo o transporte como direito fundamental. Assim, a exclusão dessas despesas da base de cálculo da CPP dá concretização à realização do direito social ao transporte e deve, por isso, ser interpretada de forma a dar a maior realização ao direito fundamental.
Ao tratar da não incidência de contribuições previdenciárias sobre o auxílio-alimentação e sobre o vale-transporte, a lei não faz qualquer distinção entre a parcela a cargo da empresa e aquela descontada da remuneração de seus colaboradores. Em nenhuma dessas hipóteses, os valores participam da base de cálculo da CPP, uma vez que a lei não firma qualquer limitação com relação ao sujeito responsável por custear os valores a serem exonerados da incidência fiscal. A Lei 8.212/91 e a CLT afastam todas as parcelas relativas ao auxílio-alimentação e ao vale-transporte da base de cálculo, indistintamente.
Tal como em uma isenção objetiva, a definição da base de cálculo é aqui dada tomando-se em consideração uma situação material e objetiva, sem que se tenha de considerar qualquer condição pessoal dos sujeitos a ela relacionados. Para fins de aplicação da norma, importa apenas a natureza e destinação dos valores a serem excluídos da incidência fiscal, os quais devem se referir a auxílio-alimentação ou vale-transporte, independentemente de quem arca com o seu custo.
A parcela descontada da remuneração do empregado tem a mesma finalidade dos valores suportados pela empresa. Em uma análise funcional e finalística, os valores pagos ao empregado e os descontos possuem a mesma natureza jurídica. O fornecimento regular de auxílio-alimentação e de vale-transporte não pode ser onerado por tributos: esse é o mandamento da lei. Não cabe ao intérprete criar discriminação em relação a circunstância em que a lei não o fez. A lei não discrimina quem arca com o ônus, mas exclui as parcelas da base de cálculo tanto da CPP, como da CPS, tanto quando quem assume o ônus for o empregador, como quando for o empregado. O auxílio-alimentação e o vale-transporte são retirados da base de cálculo das contribuições previdenciárias em razão de sua destinação, e não por causa do sujeito que suporta economicamente o ônus.
A lei não discrimina a parte suportada pela empresa daquela eventualmente custeada pelo segurado, ou seja, ambas são desoneradas para que se favoreça o atendimento do direito fundamental à alimentação e ao transporte. Seja onerando a parcela custeada pela empresa, seja incidindo sobre a parte suportada pelo empregado (valor descontado), o tributo porventura incidente estaria onerando o fornecimento de auxílio-alimentação ou de vale-transporte. O que a lei faz é desonerar esses valores para favorecer o atendimento do direito fundamental à alimentação e ao transporte dos obreiros. O afastamento dessas verbas da base de cálculo alcança ambas as parcelas, inexistindo razão que justifique o discriminem no tratamento fiscal a ser concedido ao montante assumido pela empresa ou pelo empregado.
A não integração dessas verbas à base de cálculo decorre, indistintamente, com relação às contribuições previdenciárias a cargo do empregador e do empregado, da aplicação direta do artigo 28, §9º, “c” e “f”, da Lei 8.212/91. A lei afasta da incidência tributária as verbas sem qualquer referência ou limitação em relação ao sujeito responsável por custear os valores. Em ambos os casos, frise-se, a não incidência tributária atende aos valores constitucionalmente albergados, que impuseram ao Estado o dever de assegurar o direito fundamental social à alimentação e ao transporte.
A SC 58/2020 manifesta o entendimento equivocado no sentido de que o valor descontado do trabalhador referente ao auxílio-alimentação e ao vale-transporte fazem parte de sua remuneração e, por isso, não podem ser excluídos da base de cálculo das contribuições previdenciárias. A confusa fundamentação trazida na solução de consulta é, em síntese, a de que a parcela da alimentação e do transporte custeados pelo empregado (descontada de seu salário) teriam natureza remuneratória porque antes de ser objeto do desconto elas integraram o salário do empregado. Non sense! Curiosamente, a RFB simplesmente ignora o que determina a norma de (não) incidência tributária.
Apesar de circunscrita ao regime específico de retenção, a SC 58 trata da base de cálculo da CPP, portanto, o entendimento do Fisco, recheado de equívocos, pode aparecer reproduzido em outras hipóteses de incidência, dando ensejo a autuações fiscais abusivas.
Vale repetir: o vale-transporte e o auxílio-alimentação são compostos por duas parcelas: o montante suportado pelo empregador e aquele custeado pelo empregado (desconto). Ainda que o vale-transporte e o auxílio-alimentação sejam entendidos como remuneração (o que seria um absurdo), as verbas não se sujeitam às contribuições previdenciárias em razão de norma específica que exclui expressamente a incidência (artigo 28, §9º, “c” e “f” da Lei 8.212/91). A legislação prevê expressamente a possibilidade de participação dos empregados no custeio do valor total da alimentação e do transporte. Se os descontos para essas finalidades concorrem para o efetivo custeio, não faz o menor sentido a afirmação de que o vale-transporte e o auxílio-alimentação consistem somente nos valores arcados pela empresa.
O entendimento do Fisco afronta diretamente os mandamentos da lei e chega mesmo a ofender o bom senso. O fundamento apresentado pela RFB, com a devida vênia, é simplório, pouco técnico e veio contaminado por grave equívoco em suas premissas.
Apenas porque foi descontado do empregado a parcela não deixa de ser auxílio-alimentação ou vale-transporte! Seja arcado pela empresa ou pelo empregado, essas parcelas não podem ser oneradas por tributos previdenciários para que se possa melhor atender o direito fundamental à alimentação e ao transporte. Custeados pela empresa ou pelo empregado, essas verbas, nos expressos termos da Lei 8.212/91, não estão na base de cálculo da CPP nem da CPS, para que não se onere com tributos esses valores, tudo isso para favorecer a realização do direito fundamental à alimentação e ao transporte do obreiro.
O entendimento do Fisco ataca frontalmente ao que determina a Lei 8.212/91 e, de forma reflexa, ofende aos mandamentos constitucionais que firmam o dever de o Estado favorecer ao atendimento dos direitos fundamentais à alimentação e ao transporte. O Estado deve proporcionar alimentação e transporte e não onerar a empresa ou o empregado fazendo incidir tributos sobre verbas destinadas a custeá-los.
Todo o contorcionismo mental para dar uma pretensa natureza remuneratória às parcelas descontadas do empregado esbarra em uma obviedade: os valores atinentes ao vale-transporte e ao auxílio-alimentação estão expressamente fora do campo de incidência das contribuições previdenciárias, agradando a RFB ou não. Não importando o que os agentes administrativos entendam, há de se deixar gizado que é a lei que expressamente exclui as verbas da base de cálculo do tributo.
O entendimento equivocado do Fisco causa repulsa porque, em alguma medida, decota, sob a forma de tributos, valores que são destinados pelos empregadores à satisfação de direitos fundamentais dos empregados. O tributo que quer a administração fiscal, em outras palavras, seria pago, de forma repulsiva, com alimento e transporte do trabalhador.
Fonte: ConJur