Não há renúncia de receita por parte da União em nenhuma das regras tributárias vetadas pelo presidente
Por Mattheus Montenegro e Thiago de M. Marques
Entrou em vigor no fim de semana a Lei nº 14.112, de 2020. A norma altera a Lei nº 11.101, de 2005, que, por sua vez, regula a recuperação judicial e extrajudicial e a falência no Brasil. O texto sancionado pelo presidente da República, contudo, distanciou-se em alguns pontos do Projeto de Lei (PL) nº 4.458, de 2020, aprovado pelo Congresso Nacional.
No que tange especificamente às questões tributárias, constam dois vetos: (i) ao artigo 6-B, o qual dispunha que não se aplicaria, para fins de utilização do prejuízo fiscal acumulado, a trava de 30% na apuração do Imposto de Renda (IRPJ) e CSLL sobre a parcela do lucro líquido decorrente de ganho de capital resultante da alienação judicial de bens ou direitos, pela pessoa jurídica em recuperação judicial ou com falência decretada; e (ii) ao artigo 50-A, por meio do qual buscava-se esclarecer que o PIS/Cofins não incide sobre a “receita” reconhecida contabilmente pela empresa devedora em virtude da renegociação de dívidas no âmbito da recuperação judicial.
Não há renúncia de receita por parte da União em nenhuma das regras tributárias vetadas pelo presidente
Quanto ao artigo 6-B, o objetivo era de aliviar o caixa das empresas em recuperação judicial, que poderiam utilizar prejuízo fiscal, sem a imposição da trava de 30%, na apuração do IRPJ e CSLL sobre a parcela decorrente de ganho de capital. Afinal, como é geralmente necessária a venda de bens ou direitos para a manutenção da atividade produtiva, a empresa poderia valer-se de créditos próprios sem nenhuma limitação.
Já para compreender a questão referente ao artigo 50-A é necessário ter em mente que, sob a perspectiva estritamente contábil, a redução de dívidas sem seu pagamento pela empresa devedora usualmente é classificada como “receita” de tal empresa. Assim, considerando que no contexto de recuperação judicial é comum que a empresa devedora negocie com seus credores a concessão de descontos para o pagamento de suas dívidas, a contabilidade registrará esses descontos como uma “receita” da empresa devedora.
Transplantando essa forma de tratamento contábil para o universo tributário, a Receita Federal adota o entendimento de que a diminuição de um passivo (sem seu pagamento) configura receita tributável da empresa devedora (vide, por exemplo, a Solução de Consulta Cosit nº 21/13 – parágrafo 10.3).
Daí a necessidade de se esclarecer, como pretendeu fazer o Congresso Nacional, que eventual redução de despesa negociada em sede de recuperação judicial não configura receita tributável da empresa devedora, em recuperação.
Na fundamentação do veto, o Ministério da Economia informou que as regras inseridas pelos artigos 6-B e 50-A no texto aprovado pelo Congresso Nacional representariam renúncia de receita em descompasso com a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), além de, quanto ao artigo 50-A, violar o princípio da isonomia tributária. Não há, contudo, renúncia de receita por parte da União em nenhuma das duas hipóteses.
No que se refere à trava de 30%, a sua eliminação para fins de apuração do ganho de capital simplesmente permite a utilização integral de crédito, já pertencente ao contribuinte, que seria usufruído mais cedo ou mais tarde. A medida, portanto, não traz propriamente uma renúncia de receita para a União a que alude o artigo 14 da LRF, já que, sendo o crédito integralmente utilizado, os futuros pagamentos dos tributos serão feitos em espécie, dentro ou fora do mesmo ano-calendário.
Quanto ao PIS/Cofins, não se está diante de uma receita tributável auferida pelas empresas em recuperação, tendo em vista a necessária distinção entre “receita contábil” e “receita tributável”. Essa distinção foi feita pelo Supremo Tribunal Federal (STF) quando, em 2012, sob o rito da repercussão geral (RE nº 606107/RS), decidiu que, ainda que a contabilidade “possa ser tomada pela lei como ponto de partida para a determinação das bases de cálculo de diversos tributos, de modo algum subordina a tributação”, razão pela qual a receita tributável, sob o prisma constitucional, representa “o ingresso financeiro que se integra no patrimônio na condição de elemento novo e positivo, sem reservas ou condições”. Logo, sem que se verifique receita tributável auferida pelas empresas em recuperação, não cabe cogitar eventual renúncia de receita por parte da União.
Inexiste, ainda nesse ponto, qualquer ofensa ao princípio da igualdade tributária, seja porque inexiste receita tributável da empresa em recuperação; seja porque uma empresa em recuperação judicial não está em situação similar àquela em que se encontram empresas economicamente saudáveis, ainda que atuem no mesmo setor. Pelo contrário, resulta do princípio da igualdade que empresas contribuintes que se encontram em situações distintas recebam tratamento também distinto.
Espera-se que o Congresso Nacional, debruçando-se sobre tais argumentos, exerça seu legítimo poder e derrube o veto presidencial aos artigos 6-B e 50-A do PL nº 4.458, de 2020.
Fontes: Valor Econômico e Bichara Advogados