Por Rodrigo Nóbrega Farias e Laércio Freire Ataide Filho
O Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento do RHC 163.334, se posicionou a favor da tese de que o não recolhimento do ICMS próprio, quando declarado, configura o crime de apropriação indébita tributária, definido no art. 2°, II, da Lei 8.137/90, firmando a seguinte tese: “o contribuinte, que de forma contumaz e com dolo de apropriação, deixa de recolher o ICMS cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço incide no tipo penal do art. 2°, II, da Lei n° 8.137/90”.
A referida norma define como crime contra a ordem tributária deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos. Portanto, a discussão se resume ao seguinte questionamento: o repasse do encargo econômico do ICMS próprio, destacado em nota fiscal e declarado às autoridades fiscais, ao consumidor final pelo comerciante configura cobrança de valor de tributo para fins de caraterização do crime em questão?
O STF, naquela assentada, em síntese, entendeu que sim, pois, ao embutir o imposto no preço da mercadoria adquirida, o comerciante estaria a cobrá-lo do consumidor final, razão pela qual o não recolhimento do ICMS próprio incidente sobre a operação tipificaria o crime de apropriação indébita tributária, desde que comprovadas a vontade do comerciante de não recolher o imposto e a habitualidade da prática. Por conseguinte, o Supremo reputou atendido o elemento normativo “cobrar” com a mera inclusão do ICMS na formação de preço da mercadoria.
Apesar da importância dos argumentos suscitados pela tese vencedora, ousamos dela discordar, por três principais razões, abaixo explicadas.
Em primeiro lugar, porque o STF emprega a expressão cobrar tributo em uma acepção econômica, como se o mero repasse do custo financeiro do imposto ao consumidor final fosse suficiente a caracterizar a cobrança do imposto. No entanto, tal conclusão não se sustenta juridicamente. É que, do ponto de vista jurídico, cobrar tributo pressupõe a existência de uma relação jurídica tributária entre o Fisco e o terceiro de quem se cobra, o que não há entre o Receita estadual e o consumidor final. Com efeito, o contribuinte de direito do ICMS próprio é o comerciante, e não o consumidor final, tanto é que este jamais responderá por eventual inadimplência do imposto. Em sendo assim, se o consumidor final não é, em sentido técnico, contribuinte do ICMS, não há cobrança de valor de tributo, motivo pelo qual o eventual não recolhimento do tributo não tipifica o crime de apropriação indébita tributária.
Em segundo lugar, o ICMS próprio, diferente do cobrado por substituição tributária (ICMS-ST), se submete à uma sistemática particular de apuração. A apuração do ICMS não é feita levando em consideração apenas uma operação mercantil, mas é decorrente de sucessivas operações comerciais praticadas em um mês. Em sendo assim, o mero destaque do ICMS, em uma operação mercantil, não constitui, de logo, dívida fiscal.
Por fim, a intervenção penal deve ser subsidiária e ser o último instrumento de proteção social, devendo ser resguardada aos casos de inadimplência tributária mediante utilização de fraudes ou ardis. Dessa forma, a criminalização do não recolhimento do ICMS, sem nenhum indício de fraude do contribuinte, criminaliza o mero inadimplemento e emprega o direito penal tributário como instrumento arrecadatório.
Fonte: Nóbrega Farias Advogados