Projeto apresentado pelo governo à Câmara aumenta impostos para a classe média, empresários e investidores
O ministro da Economia, Paulo Guedes, tem um especial apreço pela expressão “tirar o governo do cangote” do cidadão e do empresário. Em dois anos e meio no governo, já usou a frase para se referir às privatizações, para mudanças nas leis trabalhistas e para a necessidade de diminuir os impostos no país. Com esse discurso, ele ganhou a confiança do setor produtivo, que o vê como um aliado dentro do governo de Jair Bolsonaro. Tal alinhamento sofreu um severo abalo nos últimos dias com a entrega da proposta da segunda fase da reforma tributária, na sexta-feira 25, ao presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL). Nem tanto pelas medidas, já que algumas delas vinham sendo abertamente divulgadas, mas por trazer algo que poucos esperariam de um governo que se diz liberal: o aumento da carga de impostos para empresas, investidores e boa parte dos cidadãos.
É fato que o Brasil vive um cenário de contas públicas apertadas, que pioraram com a pandemia de Covid-19, e sem muitas folgas no Orçamento. Mas, em vez de lidar com os gastos do Estado ao protelar indefinidamente a reforma administrativa, o governo pretende abrir espaço para bondades eleitoreiras empurrando a conta para a sociedade. É disso que se trata basicamente essa segunda etapa da reforma tributária — a primeira, apresentada há um ano, versava sobre a simples unificação de impostos federais como o PIS e o Cofins. No ponto mais alardeado pelo governo, o texto propõe um aumento da faixa de isenção do imposto de renda de 1 904 reais para 2 500 reais, alta de 31%, e realinha as alíquotas entre 7% e 22,5% em quatro novas faixas, para quem ganha de 2 500,01 a 5 300 reais mensais. Sob o discurso populista de que estaria corrigindo desigualdades, tirando dos ricos para dar aos pobres, a solução sugerida não resolve a situação de nenhum lado. Na ponta da alíquota zero, ela apenas repõe parte da inflação, que estava 40% defasada em relação ao IPCA acumulado desde 2015, quando foi corrigida pela última vez. Mas é a quinta e última faixa, com salários acima de 5 301 reais, que traz as piores discrepâncias. Ali, todos pagarão 27,5%, a alíquota mais alta, ganhe o cidadão 5 301 ou 53 000 reais por mês, uma amostra que o tal desejo de redistribuição de renda não passa de discurso.
Com o pretexto de beneficiar a base da pirâmide, o governo avança sobre o bolso do resto da sociedade com medidas descalibradas, como acontece com o fim da isenção de imposto sobre dividendos, repassados pelas empresas a seus acionistas. Abolida em 1996 e compensada por ajustes em outros tributos, a cobrança renasce, agora na forma de uma mordida de 20%. A princípio, poucos tributaristas são contrários a esse tipo de taxação, desde que ela acompanhe uma redução substancial do imposto de renda da pessoa jurídica. Definitivamente, não é essa a ideia do governo. Do jeito que está o projeto da equipe de Guedes, o IR baixará apenas em 5 pontos porcentuais, o que não compensa a nova cobrança. Somando os impostos sobre o lucro das empresas, que cairão de 34% para 29%, com os 20% de dividendos, a contribuição delas e dos empreendedores pode chegar a escorchantes 49%, caso as empresas repassem todo o seu lucro em forma de dividendos a seus sócios. A medida pode, inclusive, fazer com que algumas multinacionais repensem seus investimentos no país, assim como os grandes grupos brasileiros. Ou seja: em vez de modernizar o sistema tributário para fazer com que mais recursos ajudem a economia a girar, o pacote do governo tem o risco de provocar o efeito contrário: mais desemprego, fuga de capital e até aumento do dólar. “O governo pode cair numa armadilha porque, na prática, vai cobrar mais de quem investe mais e gera mais empregos”, diz Vanessa Canado, que foi assessora de Guedes para a reforma tributária até abril.
“A proposta de reforma tributária apresentada é uma mistura de ideias novas e inteligentes. As novas não são inteligentes, as inteligentes não são novas.” Everardo Maciel, ex-secretário da Receita Federal.
Nas novas medidas, a equipe econômica não incluiu nenhum dispositivo para reverter a pesada tributação sobre a folha de pagamento dos funcionários das empresas e a cascata tributária que incide sobre a compra de produtos e serviços pelos consumidores. Assim, o país continuará sua nefasta tradição de taxar pesadamente renda, consumo e investimentos, todos ao mesmo tempo. “A proposta é uma mistura de ideias novas e inteligentes. As novas não são inteligentes, as inteligentes não são novas. A capacidade de se piorar um sistema é infinita”, diz Everardo Maciel, tributarista e secretário da Receita Federal durante os governos de Fernando Henrique Cardoso.
“Há uma agenda da Receita Federal para fechar brechas de planejamento tributário pelas empresas, o que é positivo. Mas, em seu projeto, o governo exagerou na mão nesse sentido.” Bernard Appy, diretor do Centro de Cidadania Fiscal.
Com tantos problemas, a proposta de reforma se tornou praticamente unanimidade nas críticas que recebeu e reações negativas que provocou. A Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) afirmou, por meio de nota, ser inaceitável o aumento de carga tributária sobre os empresários. Especialistas em impostos fizeram coro. “Se eu tivesse de defini-la em uma palavra, seria inoportuna. A gente pode discutir tributação de dividendos, mas não neste momento, em que ainda estamos dentro de uma crise e precisamos ajudar o contribuinte e não dificultar ainda mais sua vida”, diz Luiz Gustavo Bichara, advogado tributarista.
No mesmo dia que a segunda fase da reforma foi apresentada, a Bolsa de São Paulo caiu 1,97% e reverteu a alta que vinha sendo acumulada na semana. O projeto pegou tão mal que, já na terça-feira 29, Guedes insinuou que pode rever um ponto dele, eliminando a etapa intermediária de cortar em 2,5 pontos porcentuais o imposto de renda das empresas em 2022, antes de chegar ao corte de 5 pontos, a partir de 2023. “Estamos recalibrando, refazendo os cálculos, para ver se é possível já baixar para 5%”, declarou. Guedes argumenta que a carga tributária vai cair nas próximas duas fases da reforma, que ainda serão enviadas ao Congresso. Promete que vai desonerar os custos com a folha de pagamento das empresas — apesar de sempre atrelar isso à recriação de um imposto sobre transações financeiras nos moldes da antiga CPMF. O problema de contar com uma proposta que será enviada no futuro é desconsiderar a notória tradição brasileira de realizar reformas importantes pela metade. A probabilidade de apenas a parte que onera mais o contribuinte ser aprovada é bastante grande.
“Com a proposta, o governo pode cair numa armadilha. Na prática, vai cobrar mais de quem investe mais e gera mais emprego.” Vanessa Canado, ex-assessora especial do Ministério da Economia.
Os traços finais da proposta são um reflexo direto de seu processo de elaboração. Em seus trâmites conclusivos, o texto enviado ao Congresso ficou nas mãos de integrantes da Receita Federal, comandada pelo secretário José Tostes. Historicamente, seus representantes são mais afeitos a aumentar a arrecadação do que os benefícios aos cidadãos. “Há uma agenda da Receita Federal para fechar brechas de planejamento tributário por parte das empresas, o que até é positivo. Mas em seu projeto o governo exagerou a mão nesse sentido”, avalia o economista Bernard Appy, diretor do Centro de Cidadania Fiscal. Em conversas reservadas, técnicos envolvidos no processo de elaboração da proposta admitem que vingou a versão mais adequada do ponto de vista político. “É um projeto totalmente inoportuno para que o país retome o crescimento, que lança um ônus enorme sobre as empresas. É claramente resultado de um discurso populista, de aumentar a faixa de isenção, mas, em compensação, faz com que contribuintes que não têm nada de ricos acabem pagando a conta”, critica Marcos Cintra, secretário da Receita no início do governo.
Ao analisar as raízes da disfunção tributária brasileira, é impossível não atentar aos efeitos do tamanho desmesurado do Estado e do pouco — ou nada — que o governo faz para diminuir seu peso sobre a sociedade. As grandes privatizações começaram a evoluir apenas no último mês, com a aprovação da MP da Eletrobras. Mas a reforma administrativa pode se transformar em um fiapo do previsto inicialmente, deixando de fora os servidores atuais, os magistrados e os militares. Ou seja, melhor não contar com isso na redução significativa dos gastos para o futuro próximo. “A aproximação do ano eleitoral e o ambiente político tornam a sua aprovação menos factível”, diz a economista Ana Carla Abrão, executiva-chefe da consultoria Oliver Wyman no Brasil. “A agenda econômica que elegeu Bolsonaro está morta.”
O presidente da República não faz mistério sobre sua vontade de voltar cada centavo que puder levantar para garantir sua reeleição, e já não se furta a utilizar o Ministério da Economia para isso. O foco de sua agenda se concentra nas obras no Nordeste, onde tem um índice de aprovação mais baixo, e também na criação de um Bolsa Família vitaminado, que seria rebatizado com uma marca que fosse associada ao seu governo. Estima-se que esse novo programa custaria até 20 bilhões de reais por ano. Está também na lista de desejos presidenciais um aumento de 5% do salário do funcionalismo público. A benesse custaria outros 15 bilhões de reais. Esses 35 bilhões de reais somados podem ser financiados em parte pelos 25 bilhões de reais que o Ministério da Economia estima que terá de espaço adicional do teto de gastos para o Orçamento de 2022. Isso acontece porque o limite é reajustado pela inflação aferida até metade do ano anterior, e ela já supera os 8%, no acumulado de doze meses. Era desejável que se utilizasse essa folga para que o Brasil resolvesse mais rapidamente o seu abismo fiscal, o que não deve acontecer. “Guedes passou a ser uma peça do esquema de permanência de Bolsonaro no poder”, afirma Rubens Ricupero, ex-ministro da Fazenda do governo Itamar Franco. “Sua justificava será a de que precisa de mais quatro anos para consolidar o projeto. E por isso aceita desvios da ortodoxia liberal agora, para trazer seu projeto de volta aos trilhos no segundo mandato.”
Existem dois motivos primordiais para fazer uma reforma tributária. O primeiro é simplificar uma estrutura extremamente complexa de taxação, algo que costuma dificultar a vida das empresas e dos negócios. O segundo é baixar impostos, o que beneficia diretamente a população. Como o governo não se esforça para cortar gastos, esse último tem sido deixado de lado. A simplificação até avançou alguns passos nesta segunda fase da reforma. Mas isso se deu de forma atabalhoada. Ao criar uma taxa unificada para quase todos os tipos de investimentos financeiros, atinge novas modalidades até então isentas que estavam ganhando força no mercado brasileiro, e que poderão ser abatidas em pleno nascedouro. É o caso dos fundos imobiliários e dos fundos para as cadeias produtivas agroindustriais, estes aprovados há apenas dois meses pelo Congresso. “O fundo imobiliário é um instrumento muito positivo, na essência, uma maneira que os investidores criaram de fomentar o mercado de construção. Não dá para entender por que uma indústria que estava se desenvolvendo relativamente bem foi punida na reforma”, analisa Arnaldo Curvello, sócio-
diretor da gestora Galapagos Wealth Management. É de lamentar que um governo que se elegeu sob uma bandeira liberal esteja se preparando para um ano eleitoral com as armas de qualquer governo populista do passado.
Fonte: Bichara Advogados para Veja