Por Joana Rech
Em 18 de fevereiro de 2019 foi publicada decisão no Recurso Extraordinário n. 605.709/SP¹, na qual, por maioria de votos, foi declarada a impenhorabilidade do bem de família do fiador em contrato de locação não residencial, sendo três votos a favor pelos Ministros Rosa Weber, Marco Aurélio e Luiz Fux contra os votos dos Ministros Dias Toffoli e Luis Roberto Barroso que defendiam a penhorabilidade do bem imóvel.
Da decisão, foram opostos Embargos de Divergência, sendo que em 09 de outubro de 2020 foi publicada a decisão do Ministro Celso de Mello inadmitindo o recurso em questão, pois para ele os paradigmas invocados tratavam de contrato de locação residencial, contexto absolutamente diverso do caso sob objeto do Recurso Extraordinário em questão, que trata de fiança prestada em contrato de locação comercial.
A decisão ainda não possui caráter definitivo, pois pendem de julgamento embargos de declaração.
Nesse contexto, as decisões da Suprema Corte que até o momento não faziam distinção sobre a natureza do contrato de locação impuseram de forma inovadora tal diferenciação, posicionando-se no sentido de que a previsão contida no art. 3º, VII, da lei 8.009/90, que prevê a penhora de bem de família para satisfazer fiança concedida em contrato de locação, não abrange os contratos de locação não residencial, o que causou opiniões controvertidas quanto à constitucionalidade da medida, já que o dispositivo é taxativo, não dando margem a interpretações extensivas.
A decisão tomou como premissa, a partir do voto da Ministra Rosa Weber, que os precedentes judiciais da Corte não são aplicáveis aos inquilinos não residenciais, isso porque não se pode admitir a disparidade de tratamento que ocorre nessa modalidade de locação, de modo que o devedor principal goze de condições mais benéficas que o fiador, em total afronta ao princípio da isonomia, porquanto o devedor principal (locatário) não corre o risco de ter seu bem de família penhorado, da mesma forma em que a livre iniciativa não pode colocar em detrimento o direito fundamental à moradia, que para a Ministra é o bem maior a ser tutelado nesses casos.
Refere, ainda, que no Tema 295 da Repercussão Geral entendeu a Suprema Corte pela compatibilidade da penhora do bem de família do fiador em locação residencial com a Constituição da República, pois configurava medida de promoção do próprio direito à moradia, em relação aos locatários, pois a exclusão do bem de família do fiador como garantia nos contratos de locação residencial viria a dificultar ou mesmo inviabilizar a consecução desse direito, o que não se aplica à hipótese de locação comercial, pois o princípio da livre iniciativa, segundo a Ministra, não pode colocar em detrimento o direito fundamental à moradia, isto é, essa disparidade de tratamento, de que resulta a perda do bem de família do fiador, é agravada pelo fato de a fiança concedida em contrato de locação não residencial não se prestar a viabilizar o acesso à moradia pelo afiançado, mas a livre iniciativa.
Em contrapartida, o entendimento minoritário compreendeu que a livre iniciativa também é um direito fundamental conferido pela Constituição, o que, nesse aspecto, impulsiona o empreendedorismo ao viabilizar a celebração de contratos de locação empresarial em termos mais favoráveis.
Destacou o Ministro Luis Roberto Barroso nos debates da sessão de julgamento, que se demonstra “paternalista” estimular a pessoa, nesse caso o fiador, a não cumprir aquilo que se obrigou de forma espontânea.
Ainda, em contraposição ao voto da Ministra Rosa Weber, o Ministro referiu que “[…] a lógica de baratear o custo da fiança, na locação residencial, também se aplica, ao baratear o custo da locação, na locação comercial.” Para ele, reconhecer a impenhorabilidade do bem imóvel do fiador nos contratos de locação não residencial penalizaria os pequenos empreendedores que são os que mais precisam de fiadores para as suas locações.
Afora isso, a decisão também pontuou no sentido de que a Lei no 8.099/90, que dispõe sobre a impenhorabilidade do bem de família, ao tratar da garantia qualificada, não fez qualquer diferenciação quanto à natureza do contrato de locação, se residencial ou comercial.
Em breve síntese, a distinção aplicada visou a reforçar que a livre iniciativa não possui envergadura suficiente para superar a necessidade de observar o direito à moradia enquanto desdobramento do princípio da dignidade da pessoa humana e da proteção à família.
A confirmação dessa decisão indica uma provável mudança no entendimento da Suprema Corte, se confrontado com o entendimento esposado no Tema 295 da Repercussão Geral, sendo que já se identificam recentes decisões assentando o entendimento de que é impenhorável o bem de família do fiador em contrato de locação não residencial. Ademais, o fato de não ter sido reconhecida a repercussão geral do recurso extraordinário objeto de análise, traduz insegurança jurídica, na medida em que propicia decisões díspares pelos Tribunais Pátrios.
Nesse ponto, pressupõe-se que a decisão sirva como um fator de redução da atividade de locação, isso porque tem o condão de onerar ainda mais os custos desse tipo de transação, impondo que os locadores exijam fiadores com mais de um imóvel, sendo que um dos motivos que levaram à edição da Lei de Locações foi especialmente a promoção da atividade, que à época estava desvalorizada justamente em virtude das dificuldades enfrentadas com a falta de segurança para locador e locatário, diante das poucas opções de garantia ao contrato.
A respeito do tema, convém ressaltar a importância da interação do Direito com a Economia, convergindo para evitar, seja a aplicação pura da letra da lei, seja a aplicação da lei com interpretações extensivas, de modo que impacte negativamente no funcionamento das instituições.
Assim, sob esse aspecto, ainda que a decisão tenha como intuito promover a dignidade da pessoa humana, princípio matriz da Constituição Federal, não é possível avaliar com precisão nesse momento, quais serão as implicações por trás dessa restrição imposta ao exercício da livre iniciativa. O temor é que ocorra uma retração do desenvolvimento econômico e social e com isso, ainda que não passe de meras conjecturas, resulte no retrocesso do princípio que se visou a proteger. No entanto, tais questões só poderão ser avaliadas com a definição do tema pela Suprema Corte e posterior aplicação do direito.
¹ http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=3793360
Fonte: Lippert Advogados