Atualmente, uma das maiores batalhas que as empresas brasileiras de navegação vêm enfrentando é aquela relativa aos repasses de parte do Adicional de Frete para Renovação da Marinha Mercante – AFRMM.
O AFRMM foi criado com intuito de auxiliar o desenvolvimento da marinha mercante e da indústria de construção e reparação naval brasileira. Trata-se de tributo classificado como Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico – CIDE, de modo que a vinculação das receitas a esses propósitos é elemento norteador da constitucionalidade dessa exação. Havendo desvinculação ou emprego noutras finalidades, pode-se concluir pela inconstitucionalidade dessa contribuição.
Do ponto de vista da arrecadação, essa contribuição tem como fato gerador “o início efetivo da operação de descarregamento da embarcação em porto brasileiro” (art. 4°, da Lei n° 10.893/2004) de produtos transportados em embarcações de navegação de longo curso, fluvial, lacustre ou de cabotagem, sendo que o valor total arrecadado por parte do fisco supera, anualmente, a casa dos 2 (dois) bilhões de reais.
Já do ponto de vista da destinação, o ARFMM pode ser caracterizado como uma subvenção governamental, pois como veremos adiante, a União Federal arrecada o tributo para posteriormente repassar uma parte dos valores ao destinatário – as empresas brasileiras de navegação – por meio de seu agente financeiro, condicionando a entrega do recurso ao cumprimento, pelos benificiários, de determinados requisitos legais; outra parte dos recursos do AFRMM é depositada no Fundo da Marinha Mercante – FMM.
Portanto, uma parte é destinada ao FMM (art. 17, inciso I, da Lei n° 10.893/04); outra às empresas brasileiras de navegação (art. 17, inciso II, da Lei n° 10.893/04), a fim de que, repita-se, seja (i) empregada na aquisição e modernização de embarcações novas construídas por estaleiros nacionais, entre outros (art. 19, inciso I, alíneas “a” e “b”, da Lei n° 10.893/04); e (ii) no pagamento de eventuais financiamentos tomados para o desenvolvimento da indústria naval (art. 19, incisos I, alíneas “c”, “d” e “e”, e II, da Lei n° 10.893/04). Os valores não transferidos ao FMM, assim, são imprescindíveis às companhias brasileiras do setor, considerando seu necessário emprego em situações verdadeiramente salutares à manutenção de suas atividades.
Essa repasse às empresas brasileiras de navegação é realizado pela União por meio de depósitos em conta bancária a elas vinculada, que não podem retirar o numerário enquanto não cumprido os requisitos determinados por lei e regulamento; e, cabe ao BNDES, agente financeiro da União Federal neste caso, disponibilizar o montante relacionado aos depósitos de AFRMM.
O impasse inicia-se quando se verifica que o BNDES tem interesse antagônicos nessa relação jurídica: por um lado, visa receber o pagamento dos financiamentos concedidos às empresas brasileiras de navegação e, de outro, libera para estas mesmas empresas os valores de AFRMM já depositados em conta vinculada a elas. Resultado: o processo de disponibilização pelo BNDES dos valores referentes aos depósitos de AFRMM para as companhias beneficiárias é excessivamente demorado. Em contrapartida, o pagamento de financiamento é fugaz, impondo parcelas com vencimentos mensais em relação a cada projeto.
Desse descasamento, considerando, de um lado, a maior celeridade da cobrança das parcelas dos financiamentos e, de outro, o atraso no repasse do AFRMM, exsurge obrigação para as empresas de navegação de antecipar, utilizando de recursos próprios (caixa), o pagamento daquelas, e, posteriormente, só no momento em que são disponibilizados os valores para levantamento na conta vinculada, formular os pedidos de reembolso junto ao BNDES, culminando no óbice de conectar diretamente os valores devidos da contribuição para a quitação de financiamentos.
Como se não bastasse o atraso no repasse, o Ministério do Transporte, através do Conselho Diretor do Fundo da Marinha Mercante – CDFMM –, editou a Resolução nº 164, de 15 de junho de 2018, o que agravou a situação, pois o repasse dos recursos decorrentes do ARFMM restou limitado às despesas incorridas até os 60 (sessenta) meses anteriores aos pedidos de financiamento formulados pelas empresas. Ou seja, se houver financiamento contratado anterior a junho de 2013, as verbas decorrentes do repasse não poderão ser levantadas pelas empresas de navegação, de modo que não servirão sequer à sua quitação.
Neste particular, a Resolução é notoriamente inconstitucional, pois viola o princípio da legalidade. Isso porque a Lei nº 10.893/2004, que dispõe sobre o AFRMM, não prevê qualquer limitação relativa à destinação dada aos recursos pelas suas beneficiárias, determinando tão somente que a utilização dos recursos seja feita no prazo máximo de 03 (três) anos, contados a partir do depósito dos valores na conta vinculada da empresa requerente ( art. 21, da Lei n° 10.893/2004). Ou seja, o que importa é a efetivação do pedido para liberar os recursos no prazo de 03 (três) anos da ocorrência do depósito na conta vinculada.
Além disso, a referida Resolução violou a segurança jurídica, visto que não é dado a ninguém modificar relações jurídicas consolidadas, e integralmente perfectibilizadas, após constatado o cumprimento de todos os seus elementos, quer dizer, constatado que o ato é perfeito e o direito está adquirido sua alteração por norma infraconstitucional é ilegítima. A Resolução, aqui, violou o direito adquirido das empresas de liquidarem financiamentos pretéritos 5 (cinco) anos à Resolução, inclusive em que já houve pedido de reembolso dentro do prazo previsto no art. 21, da Lei 10.893/04.
Em conclusão, é certo afirmar que a Resolução advinda do Ministério do Transporte é ato que gera insegurança jurídica no setor naval e agrava de forma hiperbólica a frágil relação das companhias de navegação brasileira, beneficiárias da destinação do AFRMM, com a União federal, que recomenda a judicialização da questão.
Por Giuseppe Pecorari Melotti e Laura Motta Melo da Silva
Fonte: Bichara Advogados