Por Onofre Alves Batista Júnior e Paulo Roberto Coimbra Silva
Recentemente, uma questão tormentosa vem sendo enfrentada aos montes pelos tribunais do país, gerando grave insegurança jurídica. Trata-se da tentativa da Receita Federal do Brasil (RFB) de fazer incidir Contribuições Previdenciárias Patronais (CPP) e Contribuições de Terceiros (Contribuições Sociais do “Sistema S”) sobre despesas custeadas pelas empresas com a assistência à saúde e odontológica dos trabalhadores e que são descontadas da remuneração do empregado.
Os tribunais vinham atendendo ao mandamento expresso da lei até que a questão foi desvirtuada pela RFB por meio de soluções de consulta. Como ressabido, muitas vezes, as soluções de consulta, ao invés de solucionar as dúvidas dos contribuintes e consolidar um entendimento mais consentâneo com os mandamentos de legalidade e de justiça, acabam passando a servir aos interesses meramente arrecadatórios do Erário, funcionando como uma espécie de mecanismo indutor da jurisprudência administrativa e judicial. Foi assim que a jurisprudência que ia se pacificando em uma direção, começou a vacilar.
A Súmula 646 do Superior Tribunal de Justiça (STJ), aprovada no dia 12 de março de 2021, trata de tema similar e que lança luzes sobre a análise da questão, devendo ajudar a se colocar uma pedra por sobre essas discussões, como se pretende mostrar.
A questão diz respeito ao debate acerca da não incidência das CPP e das Contribuições de Terceiros por sobre DESCONTOS destinados ao custeio de assistência médica e odontológica do trabalhador brasileiro.
O imbróglio se formou, sobretudo, com a Solução de Consulta COSIT nº 04/2019, segundo a qual “o valor descontado do trabalhador fez parte de sua remuneração e não pode ser excluído da base de cálculo das CP”.
Em outras palavras, o Fisco argumenta que a assistência médica/odontológica custeada por meio de desconto (de coparticipação) é efetuado no próprio salário do trabalhador, portanto, está sujeito à incidência dos tributos referidos.
Como consabido, diversos brasileiros buscam se filiar diariamente a planos de saúde para obter uma assistência de melhor qualidade para sua família. Foi buscando harmonizar as relações entre capital e trabalho que o Direito Tributário Previdenciário pátrio, em boa hora, passou a incentivar as empresas a disponibilizarem para seus empregados assistência médica e odontológica custeada em regime de coparticipação, de forma que parte da despesa é assumida pelo empregador, e parte dela custeada pelo empregado, por meio de dedução em sua folha de pagamento.
O Direito Tributário, assim, cumprindo sua penalidade extrafiscal, passou a favorecer a tributação das empresas (no caso CPP e Contribuição de Terceiros) para que elas passassem a custear a assistência à saúde do trabalhador.
Por outro giro, cabe registrar que o benefício tributário alivia o próprio Poder Público do cumprimento de seu dever constitucional de garantir saúde para os cidadãos, como determina o art. 196 da CRFB/1988.
Como se sabe, as CPP e as contribuições de terceiros, nos termos do art. 195, I, “a”, da CRFB/1988, recaem sobre a “folha de salários” e sobre os “rendimentos pagos ou creditados” ao trabalhador.
Nesse sentido, o tributo incide apenas sobre a verba paga para o empregado como “contraprestação pelo trabalho”. Ficam, assim, afastadas da possibilidade de incidência da CPP as verbas de cunho não-remuneratório (seja por expressa determinação de lei, seja por se tratar de valores dispendidos “para o trabalho”).
A Lei 8.212/91 definiu, em seu art. 22, I, que a CPP deve incidir sobre o total das remunerações pagas aos segurados destinadas a retribuir o trabalho. O § 2º do art. 22 determina expressamente que “não integram a remuneração” as parcelas de que trata o § 9º do art. 28.
O art. 28, § 9º, “q”, determina que “não integram o salário-de-contribuição para os fins desta Lei, exclusivamente, o valor relativo à assistência prestada por serviço médico ou odontológico, próprio da empresa ou por ela conveniado, inclusive o reembolso de despesas com medicamentos, óculos, aparelhos ortopédicos, próteses, órteses, despesas médico-hospitalares e outras similares.”
Conclui-se, assim, a toda evidência, que a base de cálculo da CPP é composta pelas verbas remuneratórias e as parcelas de que trata o § 9º do art. 28, independentemente de sua natureza, não são consideradas remuneração (para fins tributários) em razão de previsão expressa de lei.
Seja porque esses valores dizem respeito a verba não-remuneratória por natureza, seja porque cumprem função extrafiscal relevante, o art. 28, § 9º, “q”, exclui expressamente essas parcelas da remuneração.
Portanto, elas não fazem parte da base de cálculo das CPP nem das Contribuições de Terceiros. A base de cálculo, assim, vem expressamente determinada pela lei, deixando de fora essas parcelas.
Nessa mesma sintonia, o art. 458, § 2º, da CLT determina que, para seus efeitos, “não serão consideradas como salário as seguintes utilidades concedidas pelo empregador: […]; IV – Assistência médica, hospitalar e odontológica, prestada diretamente ou mediante seguro-saúde; […].”
O § 5º arremata a questão firmando que “o valor relativo à assistência prestada por serviço médico ou odontológico, próprio ou não, inclusive o reembolso de despesas com medicamentos, óculos, aparelhos ortopédicos, próteses, órteses, despesas médico-hospitalares e outras similares, mesmo quando concedido em diferentes modalidades de planos e coberturas, não integram o salário do empregado para qualquer efeito nem o salário de contribuição, para efeitos do previsto na alínea q do § 9º do art. 28 da Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991.”
As leis tributárias e trabalhistas são muito claras!
É como se o direito pátrio firmasse que, de jeito nenhum, as importâncias pagas a título de assistência à saúde do trabalhador podem integrar a remuneração para fins tributários!
Essas verbas não constituem base de incidência de qualquer encargo previdenciário.
A não-incidência por sobre as verbas de saúde está consonante com o direito social garantido pelo art. 6º da CRFB/1988, uma vez que a SAÚDE é direito fundamental de índole constitucional e seu provimento exsurge como dever de Estado, que tem a incumbência de promovê-lo e garanti-lo.
Enfim, não incide tributo sobre as VERBAS DE SAÚDE porque a saúde é DEVER DO ESTADO e quem a promove favorece o atendimento a um DIREITO FUNDAMENTAL SUBJETIVO PÚBLICO DO CIDADÃO.
A não-incidência sobre o valor total da verba de saúde (valores suportados pelos empregados ou pelos empregadores) privilegia e realiza o direito fundamental, viabilizando sua efetivação.
É sabido que toda interpretação das leis infraconstitucionais deve privilegiar o atendimento dos direitos fundamentais, razão pela qual se impõe a necessidade de interpretar extensivamente as normas que favoreçam o atendimento ao direito social à saúde. E estamos falando de formatação da base de cálculo e não de isenção.
Ao tratar da não-incidência de CPP sobre as verbas de saúde, a lei não faz qualquer distinção entre a parcela a cargo da empresa e aquela descontada da remuneração dos colaboradores.
Em nenhuma dessas hipóteses, os valores participam da base de cálculo da CPP, uma vez que a lei não firma qualquer limitação com relação ao sujeito responsável por custear os valores a serem exonerados da incidência fiscal. A Lei 8.212/91 e a CLT afastam todas as parcelas relativas às verbas de saúde indistintamente.
Tal como em uma isenção objetiva, a definição da base de cálculo é aqui dada tomando-se em consideração uma situação material e objetiva, sem que se tenha de considerar qualquer condição pessoal dos sujeitos a ela relacionados.
Para fins de aplicação da norma, importa apenas a destinação dos valores a serem excluídos da incidência fiscal, independentemente de quem arca com o seu custo. A parcela descontada da remuneração do empregado tem a mesma finalidade dos valores suportados pela empresa. Não cabe ao intérprete criar discriminação em relação a circunstância em que a lei não o fez.
As verbas de saúde são retiradas da base de cálculo da CPP em razão de sua destinação, e não por causa do sujeito que suporta economicamente o ônus. A lei não discrimina a parte suportada pela empresa daquela eventualmente custeada pelo segurado, ou seja, ambas são desoneradas para que se favoreça o atendimento do direito fundamental à saúde.
Na verdade, os recursos financeiros só saem de um lado (CAPITAL), e é ele que paga a remuneração para os trabalhadores (TRABALHO). Em última análise, é apenas da empresa que saem os recursos destinados a SAÚDE do trabalhador.
Não se pode decotar nada desse dinheiro destinado a esse fim. O legislador buscou, evidentemente, incentivar as empresas a participarem do custeio da saúde de seus trabalhadores, complementando os esforços do Estado.
A confusa fundamentação trazida pela RFB é a de que a parcela das verbas de saúde custeados pelo empregado (descontada de seu salário) teriam natureza remuneratória porque já integraram o salário do empregado.
A RFB simplesmente ignora o que determina expressamente a norma de (não) incidência tributária. Custeados pela empresa ou pelo empregado, não se pode onerar com tributos esses valores direcionados para a realização do direito fundamental à saúde.
A RFB não pode meter a mão no dinheiro destinado à saúde do trabalhador. Isso é o que expressamente manda a lei. O Estado deve proporcionar saúde ao cidadão e não onerar a empresa (ou o empregado) fazendo incidir tributos por sobre verbas destinadas a custeá-los.
O Supremo Tribunal Federal (STF), ao julgar descontos absolutamente similares, relativos à previdência privada, também previstos no art. 28, § 9º, já pacificou que os valores destinados a assegurar direito fundamental do trabalhador, seja custeado pelo empregador, seja descontado do empregado, por expressa previsão legal nesse sentido, não sofrem a incidência de CPP.
Frise-se que já há reiteradas decisões, no âmbito dos tribunais pátrios, nesse sentido, tomando como precedente, sobretudo, decisão muito bem relatada pelo ministro Mauro Campbell.
Nessa mesma toada, a recentíssima Súmula 646 do STJ parece sinalizar para um entendimento que ponham fim a essas discussões. O Superior Tribunal de Justiça firmou que as parcelas que vêm expressamente previstas no art. 28, § 9º, da Lei 8.212/1991, devem ser excluídas da base de cálculo das exações, não cabendo ao intérprete perquirir sequer a natureza jurídica das verbas.
Vale reproduzir: “É irrelevante a natureza da verba trabalhista para fins de incidência da contribuição ao FGTS, visto que apenas as verbas elencadas em lei (artigo 28, parágrafo 9º, da Lei 8.212/1991), em rol taxativo, estão excluídas da sua base de cálculo, por força do disposto no artigo 15, parágrafo 6º, da Lei 8.036/1990.”
Embora tratando de FGTS, o que fica marcado é que não cabe perquirir a natureza jurídica da verba trabalhista quando a lei expressamente, a retira da base de cálculo da exação.
Enfim, o entendimento do Fisco causa repulsa, porque, em última análise, decota, sob a forma de tributos, valores que são destinados pelos empregadores à satisfação de direitos fundamentais dos empregados. A RFB quer que tributos sejam pagos com a saúde do trabalhador.
Fontes: JOTA e Coimbra & Chaves Advogados