Por Onofre Alves Batista Júnior e Paulo Roberto Coimbra Silva
O caos na saúde é patente, e as dificuldades que advirão para a economia são evidentes. Nesse primeiro momento, é verdade, todas as atenções têm mesmo de se voltar para a evitação do contágio e para as vidas humanas que precisam ser poupadas.
Entretanto, é também evidente que, tal como em um tsunami, os efeitos secundários serão catastróficos. E não estamos diante de uma “marolinha”, mas de um dos episódios mais marcantes da humanidade. As consequências para a economia brasileira serão enormes, e o Brasil, que já vinha cambaleante, pode ficar de joelhos.
Em momentos de absoluta crise, os ateus costumam rezar para Deus; em crises avassaladoras, como essa, os neoliberais tendem a compreender os keynesianos. Mas afinal, o Estado tributário distribuidor modelado pela nossa Constituição Federal de 1988 existe, agradando ou não, para isso também.
É uma pena que tenhamos um sistema tão desigual e regressivo, sob o ponto de vista tributário. O resultado é que, em momentos de maior tranquilidade, personalizam-se os ganhos e, no desastre, socializam-se os prejuízos. Algumas empresas já clamam por auxílio, como é o caso do turismo, entretenimento, companhias aéreas etc., que já estão sendo afetadas gravemente e, mesmo os “grandes demais para quebrar”, sem auxílio do Estado, podem ir à bancarrota. A consequência será o grave desemprego; a espiral recessiva etc. No final, todos perdem, e o país vai à ruína.
Mas os gastos têm de ser direcionados tão somente para o que interessa: saúde e eventuais prejudicados. Não se admite alterações que beneficiem àqueles que não são afetados. O cobertor é curto demais, e as pernas são grandes.
O governo decretou “estado de calamidade” (mensagem número 93 do presidente da República, publicada no DOU de 18 de março de 2020), mas bem devemos entender, em termos financeiros, que os efeitos reflexos dessa declaração para a economia têm um significado firme, que merece ser respeitado. Afinal, como já estabelece a mensagem, é necessário, como fizeram diversos países, adotar “pacotes robustos de estímulo fiscal e monetário, bem como diversas medidas de reforço à rede de proteção social, com vistas a atenuar as várias dimensões da crise que se desenha no curtíssimo prazo”.
O governo anunciou um pacote de medidas para o enfrentamento dos efeitos da pandemia no intuito não só de suavizar os efeitos sobre a saúde da população, mas também para atenuar as perdas da economia, sobretudo, no que diz respeito ao “produto, renda e emprego no curto prazo e facilitar o processo de retomada”.[i]
A União precisa gastar, emergencialmente, pelo menos R$ 5 bilhões, em especial com medicamentos, equipamentos, UTIs etc. A arrecadação estatal deve cair, mas as empresas paralisadas e engessadas em sua capacidade produtiva não podem contribuir com tributos. O Estado, em crise, é chamado a gastar recursos que não têm sobrando. A situação é delicada, mas o país não pode fazer parar seus motores.
Obviamente, descabem os formalismos obsoletos da Lei de Responsabilidade Fiscal, que, embora timidamente, prevê mecanismos excepcionais, como o do artigo 65, que estabelece que, na ocorrência de calamidade pública reconhecida pelo Congresso Nacional, no caso da União, ou pelas Assembleias Legislativas, na hipótese dos estados e municípios, enquanto perdurar a situação, serão suspensas a contagem dos prazos e as disposições estabelecidas nos artigos 23 (limite de despesa com pessoal), 31 (limite da dívida consolidada) e 70 (limite de despesa com pessoal), bem como serão dispensados o atingimento dos resultados fiscais e a limitação de empenho prevista no artigo 9º (quando a realização da receita não comporta o cumprimento das metas de resultado primário ou nominal estabelecidas no Anexo de Metas Fiscais). Assim, tudo certo e ajustado no que diz respeito às prestações de contas do governo, se os gastos forem bem conduzidos.
O que resta verificar é que haverá um acionamento maior de verbas previdenciárias para fazer frente aos afastamentos em razão da contaminação e, para isso, o governo precisa estar atento. Vale explicar.
É consabido que diversos empregados estarão em quarentena ou afastados, doentes, em razão da contaminação pela maléfica doença. Como poderão as empresas pagarem os salários por dois ou três meses, com a redução abrupta e significativa da atividade econômica e com seus negócios afetados drasticamente?
Em Portugal, como relata nosso parceiro Valton Pessoa, o governo editou uma portaria contemplando um pacote de medidas para auxiliar as empresas afetadas pela grave crise, que tiveram seu faturamento reduzido em pelo menos 40% (Portaria 71-A/2020, publicada em 15 de março de 2020 no Diário da República). A norma brasileira (Lei 13.979/2020), porém, é por demais singela. A lei dispõe sobre as “medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública” e que objetivam a proteção da comunidade, porém, disciplina apenas de forma confusa os períodos de ausência ao trabalho decorrentes do isolamento e da quarentena, considerando-os “falta justificada”.
Nos termos do artigo 2º da citada lei, considera-se “isolamento” a separação de pessoas doentes ou contaminadas, ou de bagagens, meios de transporte, mercadorias ou encomendas postais afetadas, de outros, de maneira a evitar a contaminação ou a propagação do coronavírus. Por outro giro, considera-se “quarentena” a restrição de atividades ou separação de pessoas suspeitas de contaminação das pessoas que não estejam doentes, ou de bagagens, contêineres, animais, meios de transporte ou mercadorias suspeitos de contaminação, de maneira a evitar a possível contaminação ou a propagação do vírus.
Nos termos do artigo 3º, parágrafo 3º, será considerado “falta justificada” ao serviço público ou à atividade laboral privada o período de ausência decorrente das medidas previstas neste artigo (quarentena ou isolamento). Incidiriam os tributos previdenciários por sobre esse afastamento decorrente da quarentena ou do isolamento?
Não se está aqui a questionar eventual “ajuda financeira”, como fez Obama, nos Estados Unidos, na crise de 2008, quando direcionou recursos para salvar o sistema financeiro. O que se está a questionar é a cobrança de tributos diante da ausência completa e comprovada de capacidade econômica de empresas afetadas por uma pandemia que paralisa, gessa, obstrui seu funcionamento regular. O resultado seria um confisco insano de recursos de empresas que estão de joelhos.
Como determina a CLT, em seu artigo 476, “em caso de seguro-doença ou auxílio enfermidade, o empregado é considerado em licença não remunerada durante o prazo desse benefício”. Os primeiros 15 dias de afastamento em razão de doença são pagos pela empresa, nos termos do parágrafo 3º do artigo 60 da Lei 8.213/1990, computando-se o tempo de serviço do trabalhador, em hipótese de interrupção do contrato de trabalho.
A partir do 16º dia é a Previdência Social que responde pelo pagamento do auxílio-doença (artigo 59 da Lei 8.213/1990), não havendo, assim, que se falar em salário pago pela empresa. Não é por outra razão que, nos termos do artigo 28, parágrafo 9º, da Lei 8.212/1990, não integram o salário-de-contribuição, os benefícios da previdência social. Traduzindo em miúdos, não incide contribuições a cargo da empresa e destinada à Seguridade Social por sobre os benefícios da previdência social.
A questão está agora em se separar o joio do trigo. Pelo menos três situações podem ser vislumbradas: (1) o empregado está doente ou contaminado por haver sido contagiado pelo vírus (isolamento); (2) o empregado está em quarentena por suspeita de contaminação; e (3) o estabelecimento está paralisado em razão da crise de saúde.
Nesse último caso, é consabido que o governo estuda solução mais segura e específica para que a empresa possa levar a cabo a suspensão temporária do contrato de trabalho e possa, assim, evitar a demissão em massa de obreiros nos próximos meses. Entretanto, acredita-se estar, indubitavelmente, diante de uma situação de força-maior, inevitável em relação à vontade do empregador, que afeta substancialmente a situação econômica e financeira da empresa, nos exatos termos do artigo 501 da CLT. Torna-se, assim, possível a suspensão do contrato de trabalho, por acordo coletivo (ou mesmo individual) como bem aponta Maurício Godinho (Curso de direito do trabalho, 18 ed., São Paulo: LTr, 2019, p. 1.268), razão pela qual, ocorre a “sustação da execução do contrato, em suas diversas cláusulas, permanecendo, contudo, em vigor o pacto.
Nesse período de suspensão do contrato de trabalho, como leciona Maurício Godinho (p. 1266), “não se presta serviço, não se paga salário, não se computa tempo de serviço, não se produzem recolhimentos vinculados ao contrato etc.”. Nesse compasso, por não se estar pagando salário, por não haver atividade laborativa e por não se computar o tempo de serviço, não se deve recolher nenhuma das contribuições previdenciárias. Ainda que o empregador opte por fazer algum pagamento eventual em favor do empregado no período de suspensão (ou que se tenha previsão nesse sentido em acordo de índole coletiva), o valor porventura pago não será salário nem remuneração e, portanto, não deve atrair a incidência de contribuição previdenciária.
Com relação aos trabalhadores em isolamento, dúvidas parecem não restar no sentido de que existe razão mais do que suficiente para o afastamento. Com certeza, nos termos da Lei 13.979/2020, não pode o empregador lançar falta para o empregado nas diversas situações do artigo 3º do diploma (coleta de exames; vacinação etc.). Entretanto, o obreiro contaminado está doente, precisa ficar recolhido e não pode trabalhar em razão da doença causada pelo vírus. Nesse compasso, por razões óbvias, os primeiros 15 dias de afastamento correm por conta da empresa, entretanto, os dias seguintes são custeados pelo auxílio-doença, não havendo de se falar em contribuição previdenciária.
Obviamente, no caso em tela se está perante uma questão sabida e consabida, portanto, dispensáveis os requisitos formais elencados nas normas previdenciárias. A toda evidência, em uma pandemia, não seria minimamente razoável o deslocamento de médicos e profissionais da saúde para atender aos requisitos formais da lei. O formalismo, nesse caso, ultrapassa o razoável e é estéril, sobretudo porque nocivo aos interesses da sociedade em um momento tão grave.[ii] Seria ofensiva ao bom senso e à ideia de razoabilidade a alegação da ausência de cumprimento de requisitos formais para fazer incidir o tributo nessa situação.
A questão mais duvidosa diz respeito à quarentena, porque, nesses casos, existe apenas suspeita de contaminação. Não restam dúvidas de que quem está contaminado está doente: as manifestações da doença é que são as mais variadas. Entretanto, para fins de afastamento do trabalho, nada disso interessa, uma vez que o obreiro deve ficar em casa se tratando, ou no hospital. Acontece que, em muitos casos, a quarentena não comprova estar o trabalhador doente.
Salvo melhor juízo, nessas situações de quarentena, não se pode dizer que o empregado está apto ao trabalho. Se ele comparecesse ao trabalho, deveria o empregador mandá-lo para casa ou para o confinamento. Nesse sentido, parece mesmo que a justiça apenas é feita quando se considera a quarentena como doença (potencial e não manifestada ainda). São os próprios órgãos governamentais que, nos termos da Lei 13.979/2020, determinam que o empregado fique confinado e não vá ao trabalho. Nessa mesma direção, nos termos do próprio parágrafo 10 do artigo 60 da Lei 8.213/1990, é possível a concessão do auxílio-doença por decisão judicial ou administrativa.
Comprovada a doença, o tempo de quarentena se soma ao de isolamento para fins de se computar os 15 dias a cargo da empresa. A partir de então, as despesas correm por conta do INSS. Só caberia cogitar de uma discutível incidência de contribuições previdenciárias nesses primeiros 15 dias; a partir daí, com toda evidência, não incidem os tributos referidos. Se não for comprovada a contaminação e a quarentena durar mais de 15 dias, acredita-se que o tratamento deve ser o mesmo a partir do 15º dia, devendo, a partir daí, indiscutivelmente, não mais incidir a contribuição previdenciária.[iii]
Em um momento em que pacotes devem ser aprovados para garantir a saúde das pessoas e das empresas, para que os efeitos devastadores da crise causada pela pandemia não sejam majorados, esse é o entendimento que nos parece mais adequado. O entendimento contrário, estaria tocando na seara do confisco e, quando pouco, seria absolutamente desarrazoado e desproporcional.
[i] Sobre o tema, vale conferir as medidas adotadas pela PGFN:
[ii] Em homenagem à razoabilidade, algumas formalidades já estão sendo dispensadas. Basta conferir: “Coronavírus: não haverá bloqueio do pagamento por não realização da prova de vida”. Além da interrupção do procedimento, INSS estabelece novas regras temporárias para manutenção de benefícios: “[…] A partir de abril, os benefícios do INSS também serão mantidos, sem a necessidade de apresentação de declaração de cárcere, de CPF ou da execução do programa de reabilitação profissional, entre outras rotinas habituais que exigiam a presença física do segurado.” Confira-se: https://www.inss.gov.br/corrigido-coronavirus-nao-havera-bloqueio-do-pagamento-por-nao-realizacao-da-prova-de-vida/.
[iii] Entendemos que não incide contribuição previdenciária nos primeiros 15 dias pagos pela empresa, em nenhuma hipótese.
FONTES