Por Luiz Edmundo Kielbovicz
As recentes alterações promovidas pela Lei/RS n. 15.056/2017 e pelos Decretos Estaduais/RS n. 54.308/18 e n. 54.490/2019 na legislação tributária do Estado do Rio Grande do Sul, criaram a hipótese de responsabilização do
contribuinte substituído pelo pagamento de complementação do ICMS devido na sistemática da substituição tributária, quando o preço praticado na operação a consumidor final seja superior à MVA utilizada no cálculo do imposto devido no regime de ST. Segundo a legislação citada, o contribuinte substituído varejista deverá apurar mensalmente o recolhimento a menor do imposto, registrando estas informações na EFD e na GIA, procedendo à complementação, quando apurado saldo a pagar do imposto.
Todavia, a cobrança desta complementação apresenta ilegalidade e
inconstitucionalidade, principalmente em razão da ausência desta hipótese de tributação na Lei Kandir, além de violação direta à garantia prevista no §7o do art. 150 da CF/88 (§ 7o A lei poderá atribuir a sujeito passivo de obrigação tributária a condição de responsável pelo pagamento de imposto ou contribuição, cujo fato gerador deva ocorrer posteriormente, assegurada a imediata e preferencial restituição da quantia paga, caso não se realize o fato gerador presumido), conforme será demonstrado a seguir.
Primeiramente, destaca-se que esta alteração normativa está fundamentada
em decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), proferida na sistemática de
repercussão geral (Recurso Extraordinário 593.849), o qual fixou a tese de que “É devida a restituição da diferença do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) pago a mais no regime de substituição tributária para a frente se a base de cálculo efetiva da operação for inferior à presumida.”
Por analogia, os Estados entenderam ter o direito de receber a diferença,
também, do ICMS pago a menor, ou seja, quando base de cálculo presumida do imposto foi inferior ao preço final efetivamente praticado.
Ocorre, entretanto, que este entendimento não encontra respaldo no texto
constitucional vigente.
O direito à restituição está assegurado no §7o do art. 150 da CF/88. O
dispositivo garante expressamente “a imediata e preferencial restituição da quantia paga”, sem fazer qualquer ressalva à eventual restituição. Mais do que isso, a norma está incluída na seção “Das Limitações ao Poder de Tributar”. Nesse contexto, o caráter finalístico da norma não é criar novos ônus aos contribuintes, mas apenas limitar o poder de tributação do Estado. Interpretá-lo de outra forma, como fez o Estado do Rio Grande do Sul, caracteriza-se como uma verdadeira inversão da ordem constitucional.
Ao fixar bases de cálculo presumidas superiores aos preços efetivamente
praticados nas operações, o Estado estará violando a capacidade contributiva dos sujeitos passivos. Dessa forma, o contribuinte faz jus à guarida constitucional. Por outro lado, se as bases de cálculos forem menores, tal fato decorre de um erro do próprio Estado na fixação destas bases. Assim, ainda que pudesse ser defendida a tese de cobrança complementar com base em argumentos de isonomia, o fato é que nem a Constituição, nem a Lei Complementar, contemplam a hipótese de proteção do Estado de suas próprias condutas equivocadas.
É fato que a sistemática da ST permite ao Estado ganhos em escala, por razão da concentração da fiscalização. Entretanto, se, ao escolher por esta forma de tributação o Estado acaba por fixar uma base de cálculo menor à efetiva, isso é um risco inerente à escolha deste formato de tributação. O que não pode ocorrer, e o que a CF/88 não permite, é que tal ônus recaia sobre o contribuinte.
Ainda que a regra geral da Lei Kandir determine que o fato gerador ocorre no momento da saída da mercadoria, e que o estabelecimento que realizou a saída é o responsável pelo pagamento do imposto, a ST é uma exceção a esta regra, sendo impossível a aplicação concomitante das duas sistemáticas de cobrança, conforme vem sendo defendido pelo Fisco.
Fosse de outra forma, exigindo-se a complementação do imposto apesar da
prévia tributação, sequer haveria motivo para existir a substituição tributária. O que ocorreria, na verdade, seria uma simples antecipação de parte da tributação.
Como o próprio nome sugere, ocorre a substituição (definida pelo dicionário Michaelis como “troca de uma pessoa ou coisa por outra”), o que indica que a responsabilidade do substituído está encerrada. Não ocorre, portanto, qualquer espécie de divisão ou transferência parcial de responsabilidade a ensejar que o tributo seja cobrado de dois contribuintes.
E ainda que se admitisse que a instituição da cobrança em questão já esteja amparada pela legislação complementar, a forma como o Estado do Rio Grande do Sul regulamentou sua cobrança está maculada de flagrante inconstitucionalidade.
A complementação do pagamento do ICMS no Rio Grande do Sul, caracteriza-se, na verdade, como um novo tributo, uma vez que não se permite a apuração de saldo apurado no Ajuste do ICMS/ST com o saldo do ICMS próprio, calculado a partir das operações como mercadorias não sujeitas à ST.
Contudo, a violação mais grave ao §7o do art. 150 da CF/88 ainda é a
impossibilidade de restituição efetiva do saldo a ser restituído.
Com as alterações introduzidas pelo Decreto n. 54.308/18 no art. 25-C, II, do
RICMS/RS, ao final de cada período de apuração, deverá ser deduzido do
montante do imposto efetivo o montante do imposto presumido. Assim, “o saldo negativo constituirá valor a restituir, que será compensado com saldo devedor de substituição tributária, se houver, e, havendo valor remanescente, o saldo será transferido para o período ou períodos seguintes.”
Em suma, o Decreto determina que, caso o contribuinte tenha recolhido
imposto a menor, deverá efetuar o pagamento da diferença. Por outro lado, se o contribuinte tiver sido onerado a maior pela sistemática da ST, não haverá devolução em espécie do ICMS-ST recolhido a maior, mas apenas reconhecimento do direito creditório, o que nega vigência da garantia constitucional de “imediata e preferencial restituição.”
Cria-se, assim, uma situação deveras gravosa, tendo em vista que o contribuinte que praticar venda a consumidor final com preço inferior ao presumido terá que se conformar com o crédito escritural que, se não tiver débitos próprios de ICMS ou saldo devedor de ICMS-ST, de nada lhe servirá.
Não há dúvidas, portanto, de que o Decreto/RS n. 54.308/18 não representa
um simples ajuste de contas entre as diferenças do preço presumido e praticado, mas uma ferramenta ardilosa de majoração da carga tributária e uma total transgressão do entendimento esposado no julgamento do RE 593.849. Não se trata da promoção de uma condição de equiparação entre fisco e contribuinte, como consequência do Princípio da Isonomia. No caso do Decreto, o contribuinte é posto em insofismável disparidade perante o Fisco, ao ter negado o direito constitucional de restituição imediata e preferencial.
O desacordo com o julgado do RE 593.849 é tão evidente que o próprio STF
já se manifestou contrário ao entendimento de que a tese fixada se estende à possibilidade de restituição.
No caso, o Estado de Minas Gerais opôs embargos de declaração, requerendo que fosse aditada a tese firmada, para incluir a necessidade de
complementação do imposto. Com isso, entendeu o Ministro Relator, Edson Fachin, que “não há omissão na súmula da decisão, por não abarcar os casos em que a base presumida é menor do que a base real, porquanto se trata de inovação processual posterior ao julgamento, não requerida ou aventada no curso do processo.”
Além do mais, a Lei n. 15.056/2017 e o Decreto n. 54.308/18 são
inconstitucionais em razão do que dispõe o art. 155, inciso II, § 2o, inciso XII, alínea “b”, da CF/88, que reserva à lei complementar dispor sobre a substituição tributária.
Assim, ainda que se admita, a título argumentativo, a possibilidade de
complementação do imposto pago via ST para frente, tal matéria está reservada à lei complementar, porquanto diz respeito ao próprio regime da ST.
Diante do exposto, em face das disposições contidas no Decreto Estadual n.
54.308/18, os contribuintes gaúchos restam prejudicados pela medida, que
constitui uma verdadeira majoração ilegal e inconstitucional da carga tributária, que, além de tudo, nega o direito constitucional de restituição do ICMS-ST cobrado em operações anteriores.