Não É Não(!): a positivação do XX inquisitorial; inconstitucional?

Por Rodrigo Castelli¹

Num almoço familiar, há uns meses, surgiu um debate sobre algo que ocorrera no Big Brother Brasil [BBB], envolvendo uma cantora estrangeira e um artista que, antes do nome, denomina-se como “MC”.

Sem ter contato com o famoso programa global, cuidei de ouvir bem dos meus (familiares) do que se tratava… e, em síntese, notei que no curso de uma festa regada a álcool e denunciados incentivos libidinosos – porque dão ibope! –, o tal “MC” teria tocado a moça (mexicana?), que externava encarar tudo com normalidade.

Instada após o fato sobre o potencial assédio, a estrangeira disse “à produção que não se sentiu incomodada pela situação. ‘Eu não esperava, foi muito rápido… Foi normal’, afirmou ela sobre o beijo”

Mesmo com a afirmação da hipotética vítima de que não se sentiu violada, incomodada, assediada, a produção do programa eliminou o “MC” e outro participante, pichando-os de assediadores… claro, sob os olhares franzidos do implacável “Juiz”, o apresentador do renomado programa.

É como se o apresentador dissesse: Como assim? Não sabes o que dizes!!!! Fostes (sim!) assediada!!!!

Foi então que eu, à mesa do almoço, apenas externei outro norte de visão (possível?) e fui alvejado por uma tia minha, que me presenteou com uma prima e um primo. E ela, tomando a filha como parâmetro, disse: _é assédio, é assédio.

Neste momento lembre-a também da existência do meu primo, e a alertei dizendo: _tudo bem… mas fique sabendo que, se a namorada do seu filho disser que ele avançou o sinal, que de um certo momento em diante ela não quis mais, ele sucumbirá ao fervor da lei e da forma com você a lê e defende! Ou seja: ele será fatalmente condenado!

Disse ela então: Mas não tem que provar?

Em resposta, apenas repliquei a jurisprudência: “nessa espécie de crime a palavra da vítima ganha especial relevo”

Depois disso, calaram-se… todos mantendo as impressões que suas consciências e convicções já haviam apontado.

Tudo bem, … Tudo bem? Tudo bem, pra quem?

E o direito… de defesa daquele acusado de assédio? E as garantias constitucionais fundamentais? Estariam ceifadas apenas pelo gênero da vítima?

O que a mim parecia clarividente pelas respostas do Poder Judiciário em casos como tais, restou positivada pelo festejado protocolo “Não é Não”, estabelecido na Lei nº 14.786, de 28 de dezembro de 2023.

Não, não é necessário ler o diploma legal inteiro… mas apenas estes dois dispositivos:

Art. 4o Na aplicação do protocolo “Não é Não”, devem ser observados
os seguintes princípios:
I – respeito ao relato da vítima acerca do constrangimento ou da
violência sofrida;


Art. 5o São direitos da mulher:

VII – definir se sofreu constrangimento ou violência, para os
efeitos das medidas previstas nesta Lei;

A redação dos dois dispositivos pinçados praticamente fulminou o debate – saudável, diga-se – entre conotação procedimentalista e/ou substancialista do direito e de sua aplicação.

Voz forte do eixo procedimentalista é a de JÜRGEN HABERMAS, para quem

O paradigma procedimental do direito orienta o olhar do legislador
para as condições de mobilização do direito. Quando a diferenciação
social é grande e há ruptura entre o nível de conhecimento e a
consciência de grupos virtualmente ameaçados, impõem-se medidas
que podem “capacitar os indivíduos a formar interesses, a tematizá-
los na comunidade e a introduzi-los no processo de decisão do Estado.4

Trocando em miúdos, para os procedimentalistas, há de proteger-se as bases do procedimento democrático, na perspectiva da divisão de Poderes, não cabendo ao Poder Judiciário nenhum elemento “criativo”.

Em contrapartida, os substancialistas vão além… e defendem o direito como algo transformador, inclusive na plataforma jurisprudencial. WERNNECK VIANNA sugere a seguinte retina a enxergar o substancialismo:

A interpretação criativa do juiz não seria a do exercício do poder
discricionário, como na teoria positivista, nos casos de ausência ou
de indeterminação da norma. Ao contrário, dado que a sua
interpretação deve estar constrangida pelo princípio da coerência
normativa face à história do seu direito e da sua cultura política. O
juiz, por meio da sua decisão em um hard case, que necessariamente
transita por uma reconstrução dessa história, deve levar à frente, em
um processo do tipo preservar–mudando, o direito real,
contemporâneo. Não são, consequentemente, os valores pessoais do
juiz que devem pesar na hora da interpretação momento de
reconstrução-construção em que se selecionam, em um esforço
moral e intelectual heroico, os princípios que, presentes em sua
cultura política, melhor justificam as doutrinas e o sistema jurídico,
concretizando-os, então, no seu julgamento do caso concreto. O
suposto inarredável desse construtivismo seria o de que a ordem
jurídica, na forma do comentário de Habermas sobre Dworkin,
contenha algum fragmento de razão, que permita aos indivíduos, em
uma dada comunidade de direito, se reconhecerem como livres e
iguais. 5

Em suma, a corrente substancialista defende a proteção, pelo Poder Judiciário, da primazia da Constituição, como forma do Estado realizar os valores fundamentais e superiores, de forma que este intervencionismo consagraria o cumprimento dos Direitos Fundamentais em perspectiva macro, evitando que os valores relevantes se transformem em promessas esquecidas.

Em rápidas pinceladas, procedimentalismo tem uma coloração mais fria, bastando para dar validade ao ato o respeito ao procedimento, à regra; já no substancialismo, como o próprio nome sugere, os holofotes voltam-se para a substância, com o conteúdo. Nesta senda:

“[…]
Em linhas bastante gerais, pode-se dizer que as posturas
procedimentalistas veem a Constituição mais como garantia para que
o jogo político ocorra dentro da lei, ao passo que, as substancialistas,
entendem que, mais do que ‘equilibrar e harmonizar os demais
poderes’, o Judiciário deveria assumir o papel de um intérprete que
põe em evidencia a ‘vontade geral implícita no direito positivo,
especialmente nos textos constitucionais, e nos princípios
selecionados como de valor permanente na sua cultura de origem e
na do Ocidente’.
[…]”6

Fica evidente que, do cotejo do que pensam e sugerem ambas as teorias, com os artigos da novel lei acima transcritos, que nenhuma delas atende à teleologia legal, que cria praticamente um direito – potestativo? – à mulher, com duas normas verticais: um princípio – de respeito ao relato da vítima – e uma regra – dela definir-se como vítima!

De tudo o que se lê, tomando a novata lei em mãos e cotejando-a com o que vem povoando a Jurisprudência, é possível dizer que foi positivada, com o tal protocolo “Não é Não”, a culpa de forma inquisitorial, pois, para que o Juiz – e agora refiro-me ao Juiz-Juiz, não ao “juiz-apresentador” – absolva alguém que a vítima definiu ser autor de constrangimento, violência e/ou assédio contra si, terá que negar vigência a um princípio (art. 4°, I) e uma regra (art. 5º, VII), ambos positivados na Lei nº 14.786, de 28 de dezembro de 2023 e, quem sabe, se assim o fizer, ter contra si instaurado um procedimento no Conselho Nacional de Justiça, para aferição de “condutas”.

Enfim, da moldura impressa pelo que se pode notar de todo este contexto, é forçoso concluir que uma voz – por conta do gênero – fez letra morta cláusulas pétreas previstas CRFB/1988, mormente aquelas garantias previstas nº art. 50, LIV7 e LV8, porque, ao fim e ao cabo, inócuos frente à visceralildade da lei tornar-se-ão tanto o contraditório quanto a ampla defesa, frente à definição de culpa, vinda só e só da voz da vítima!

Pela lei, a palavra da mulher deixa de ter apenas especial relevância em condutas como tais, para paramentar-se de vertical, incisiva e inquisitorial imposição de culpa – sem qualquer julgamento prévio, aquele julgamento por um Juiz –… mandando às favas não só o prévio e até então imprescindível due processo of law, como – por que não afirmar? – o monopólio da Jurisdição.

Constitucional?

As opiniões contidas neste artigo não refletem necessariamente a opinião da ALAE – Aliança de Advocacia Empresarial.

1 Especialista e Mestre em Direito; Advogado na Prado, Castelli, Vasconcelos Sociedade.Advogados; aliado da ALAE; Coordenador Jurídico da Agencia de Negócios do Estado de Sergipe – DESENVOLVE-SE
2 In https://www.estadao.com.br/emais/tv/bbb-23-cara-de-sapato-e-guime-sao-expulsos-apos-acusacoes-de-assedio-a-mexicana/, com acesso em 09.01.2023, às 15:11h
3 TJSP; Apelação Cível 1134040-34.2016.8.26.0100; Relator (a): Melo Colombi; Órgão Julgador: 14ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível – 15ª Vara Cível; Data do Julgamento: 16/05/2018; Data de Registro: 17/05/2018
4 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia, entre a facticidade e validade, p. 185
5 WERNNECK VIANNA, Luiz et al. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil, p. 36
6 STRECK. Lênio Luiz. O que é isto – decido conforme minha consciência?, vol. 1, 5ª Ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015, pag. 201-202.
7 LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;.
8 LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.

Escritório Aliado: Prado, Castelli, Vasconcelos Sociedade de Advogados

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