O desvirtuamento do IOF | Bichara Advogados para Valor Econômico

Por Luiz Gustavo Bichara e Murillo Estevam Allevato Neto

Como amplamente noticiado, foi recentemente editado o Decreto nº 10.797, que majora o IOF sobre as operações de crédito – de 0,0041% para 0,00559% (2,42% ao ano) no caso de pessoas jurídicas, e de 0,0082% para 0,01118 (4,46% ao ano), no caso de pessoas físicas. O aumento será aplicável para os empréstimos concedidos entre 20 de setembro de 2021 e 31 de dezembro de 2021. Ou seja, as novas alíquotas passaram a valer três dias após a publicação do referido decreto na imprensa oficial.

O aumento do IOF ocorreu justamente no momento em que o governo federal enfrenta o impasse consubstanciado na aprovação do Projeto de Lei Orçamentária Anual, cujo estoque de precatórios inviabilizaria o repasse de recursos para o Programa Auxílio Brasil (novo Bolsa Família), sob pena de violação do teto de gastos estabelecido na Constituição. Segundo noticiado na imprensa, o aumento do IOF geraria uma arrecadação adicional de R$ 2,14 bi, dos quais R$ 1,64 bi seriam destinados ao financiamento do Programa Auxílio Brasil. O aumento tem, portanto, inescondível caráter arrecadatório (como inclusive assumido pelo ministro Paulo Guedes em inúmeras entrevistas).

O perfil constitucional desse tributo não permite que ele exerça uma função puramente arrecadatória

Ocorre que o IOF não pode se prestar a isso. O perfil constitucional desse tributo não permite que ele exerça uma função puramente arrecadatória. E justamente por isso é que a Constituição excepciona o IOF das chamadas Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar, em especial: (i) o princípio da legalidade, por meio do qual os tributos apenas podem ser instituídos ou majorados por lei – sem sentido estrito; e (ii) o princípio da anterioridade, por meio do qual o aumento de tributos apenas pode produzir efeitos tão somente no ano seguinte e/ou após o transcurso de 90 dias após a lei que os institui.

Ou seja, o IOF acaba sendo um tributo que comporta aumentos sem as peias e amarras constitucionais que constituem o chamado Estatuto do Contribuinte, e isso só se dá porque seu design legal o atribui perfil de tributo regulatório – com uma missão distinta da meramente arrecadatória.

É dizer, o racional subjacente a essas exceções reside justamente na natureza regulatória do IOF. A própria lei confere ao Poder Executivo alterar as alíquotas do IOF até o limite de 1,5% ao dia para fins de cumprir os objetivos de política monetária, cambial e fiscal.

A título ilustrativo, essas exceções se encontram previstas na Constituição em pouquíssimos casos além do IOF, as saber: (i) o Imposto de Importação, para atender as necessidades da balança comercial bem como deter eventuais prejuízos ocasionalmente gerados com importações desenfreadas e; (ii) o IPI, o qual pode ter sua alíquota majorada em decorrência de uma série de fatores, tal como a necessidade de estimular ou desencorajar o consumo de determinado produto.

Já a alteração das alíquotas IOF deve ter por objetivo incentivar ou desestimular comportamentos por parte dos contribuintes em relação às suas atividades financeiras. Para que o IOF possa cumprir com seu objetivo regulatório as suas alterações devem produzir efeitos considerando a conjectura econômica sob a qual foi estipulada a política monetária, cambial ou fiscal, por parte do Poder Executivo.

Ora, de nada adiantaria prever o aumento ou redução do IOF para contribuir com a implementação de tais políticas, se ele passasse a produzir efeitos no ano subsequente, ocasião na qual o ambiente econômico não seria o mesmo. Claro que essa intervenção requer agilidade.

A instituição de tributo com o objetivo de regular a política monetária, cambial e fiscal foi bastante acertada. O mercado financeiro é sujeito à violentas flutuações. O IOF representa um poderoso instrumento para o Poder Executivo neutralizar os seus impactos, sempre e quando for utilizado de forma correta e cautelosa. Ademais, o IOF pode auxiliar na fiscalização de operações realizadas no mercado financeiro e de crédito, de modo a combater sonegação e crimes financeiros.

Portanto, nota-se que a exceção constitucional tem razão de ser. E nota-se também que caso se admitisse que o IOF pudesse ter função meramente arrecadatória, estar-se-ia aceitando que a União pudesse majorar a alíquota do tributo sempre que necessário para cobrir este ou aquele rombo nas contas públicas e, lembre-se, SEM LEI – sem consentimento popular.

O consagrado princípio da legalidade consiste na certeza do cidadão de que não pagará tributo sem que a lei o estabeleça – “no taxation without representation”. O Decreto nº 10.797 representa verdadeiro oportunismo, diante da majoração imediata do IOF sem o devido consentimento popular.

Se o intuito é arrecadar, devem ser observados os procedimentos legais previstos para quaisquer tributos, tal como está ocorrendo no caso da Reforma Tributária do Imposto de Renda e da tributação sobre o consumo, sujeitas a amplo escrutínio popular.

O Ministério da Economia inclusive já revelou sua pretensão em instituir um tributo sobre transações financeiras com o intuito de aumentar a arrecadação e reduzir a oneração sobre a folha de salários. Diante da resistência do próprio Executivo, bem como do Legislativo e demais representantes da sociedade, a inciativa foi abandonada. A mensagem da sociedade nesse sentido foi clara: não se quer onerar as transações nem as operações financeiras.

Como se tudo não bastasse, impossível não apontar o contrassenso que é desestimular o crédito exatamente no momento de retomada da economia. Realmente para que o Poder Executivo Federa vem se esforçando para dificultar a vida dos contribuintes. Seria o caso de tropicalizar a célebre advertência de Ronald Reagan: “Eis as 10 palavras mais sinistras da língua inglesa: sou um membro do governo americano e estou aqui para ajudar vocês”.

Fonte: Bichara Advogados para Valor Econômico