‘Obrigações acessórias’: do interesse da fiscalização à mera comodidade | Lacaz Martins, Pereira Neto, Gurevich & Schoueri Advogados para JOTA

A importância de se adotar postura crítica quanto aos deveres instrumentais

Por Luís Eduardo Schoueri

O século XX foi marcado pelo desenvolvimento do Direito Tributário material. A relação jurídico-tributária, antes vista como mera sujeição, ganhou o reconhecimento universal de vera obrigação, encontrando diversas balizas. Nossa Constituição de 1988 dedicou um capítulo ao Sistema Tributário Nacional, cuidando de explicitar um rol de “Limitações ao Poder de Tributar”, dando a impressão de que se assegurava, assim, uma relação civilizada e regrada entre Estado e contribuinte. Cumpriu papel determinante a doutrina que, antes e depois do texto constitucional, cuidou de explicitar os contornos daquelas Limitações.

Lamentavelmente, o zelo doutrinário dedicado à obrigação dita “principal” não se estendeu às “obrigações acessórias”. Talvez fosse julgada matéria de menor importância, que não mereceria a atenção dos juristas. Viam-se, aqui e ali, manifestações doutrinárias que, ao arrepio do texto constitucional, exigiam sua instituição por lei, não pela “legislação”; tal entendimento jamais encontrou acolhida por nossos Tribunais. Reconhecida a possibilidade de a “legislação” inovar na matéria, viu-se a Administração livre para criar os mais diversos deveres, sem que se encontrasse, na doutrina ou na jurisprudência, oposição séria a tal prática. É bem verdade que há estudos recentes em tal direção. Lembro aqui da excelente dissertação de Caio Takano, defendida na Faculdade de Direito da USP¹, mas ainda são raros os autores que se dedicam ao tema.

Não se fez de rogada a Administração. Os deveres instrumentais que, na dicção do artigo 113, §2º, do CTN, hão de encontrar limite “no interesse da arrecadação ou da fiscalização” espalharam-se e sobrepuseram-se. Corriqueira tornou-se a criação de novos deveres, sem que se preocupasse a Administração em justificar sua imposição.

Pergunta que merece ser formulada é: existe interesse quando a informação já está disponível? Exemplo claro pode ser encontrado no fato de que, por conta do SPED, hoje tem o fisco acesso à própria contabilidade; boa parte dos dados que devem ser informados nos mais diversos formulários já foram disponibilizados no mesmo momento em que foram lançados na contabilidade. Qual, então, o interesse da fiscalização ou da arrecadação? O tema se torna ainda mais grave quando se considera a prevalência, no Brasil, da modalidade de lançamento por homologação: exige-se que o contribuinte faça cálculos que poderiam (rectius: deveriam) ser feitos pela Administração, impondo-se multas altíssimas em caso de qualquer erro².

Na verdade, o que se constata é que a Administração confunde interesse com conforto. A Administração tem interesse em informação nova; se a informação já lhe foi prestada, já não há mais interesse; há, sim, mera comodidade: no lugar de se dar ao trabalho de processar as informações, delega-se essa tarefa ao contribuinte.

Deve-se dizer que essa tarefa é bastante custosa. Tenho dito que se é verdade que é doloroso pagar tributos (quem pode negar?), muito mais dor causa pagar para pagar tributos. É dizer, os custos de conformidade (“compliance costs”) são estratosféricos no Brasil. Para não me referir ao conhecido estudo de PWC e Banco Mundial que mostra vergonhosas 1501 horas gastas por empresa no Brasil em um ano³, lembro de levantamento efetuado pela FIESP que apontava que a indústria paulista gasta anualmente 1,2% do seu faturamento apenas nos custos de conformidade4[. Se lembrarmos que alíquota do PIS, no sistema cumulativo, é de 0,65% do faturamento, então temos que os custos de conformidade alcançam quase o dobro do que se recolhe com esse tributo.

Ora, se o que se exige do contribuinte não passa de (re)processamento de dados de que a Administração já dispõe, então parece claro que, em verdade, a Administração se vale dos próprios deveres instrumentais como forma de terceirizar custos que, afinal, são seus.  É dizer, no lugar de incorrer ela, Administração, em custos necessários para apurar seus créditos, impõe ao particular que o faça. Mais fácil que lutar por verbas no orçamento, com o desgaste político próprio, simplesmente se passam os custos adiante. Não parece errado, pois, afirmar que o particular assume os custos da própria Administração ou, o que dá no mesmo, pode-se dizer que não só o contribuinte paga seus tributos – mensurados segundo a capacidade contributiva – mas também paga in natura, i.e., por meio de serviços prestados para a Administração.

Descortina-se, daí, a grande distorção do atual cenário: se, por meio dos tributos a Administração financia seus gastos, são estes distribuídos segundo a capacidade contributiva. Quando, entretanto, a Administração deixa de exercer suas atividades internas e as terceiriza por meio dos deveres instrumentais, então são esses distribuídos entre todos os contribuintes – mesmo os que não tenham qualquer condição de arcar com os custos públicos.

Vivemos, assim, com duas cargas tributárias. De um lado, há aquela decorrente das obrigações principais, formadas pela vera arrecadação dos tributos que, conquanto inúmeros, confusos e sobrepostos, ainda precisam observar as Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar. De outro lado, há a carga tributária escondida (1,2% do faturamento!), que aumenta sem qualquer controle do Legislativo e cujo ônus é assumido por toda a sociedade, sem qualquer critério de justiça.

Diante disso, reside a importância de se adotar postura crítica quanto aos deveres instrumentais. Não se trata aqui de negar a possibilidade de se instituir um dever instrumental baseado no interesse da arrecadação ou da fiscalização, mas da necessidade de questionar a sua permanência. Um-a-um, os deveres instrumentais hão de se justificar nos termos do que dispõe o CTN: ausente o interesse da arrecadação ou da fiscalização, não cabe sua manutenção. O dever instrumental – ferramenta essencial para o bom funcionamento do sistema tributário – não pode ser convertido em mera ferramenta de terceirização de custos administrativos. Afinal, o interesse da Administração não se confunde com sua mera comodidade.

[1] TAKANO, Caiio. . Deveres Instrumentais dos Contribuintes: fundamentos e limites. São Paulo: Quartier Latin, 2017.

[2] SCHOUERI, Luís Eduardo e GALENDI JÚNIOR, Ricardo André, Compliance tributário como política pública: a função protetiva do lançamento e a culpabilidade no sistema de multas. In MARTINS, Ives Gandra da Silva e MARTINS, Rogério Vidal Gandra da Silva (coords.), Compliance no Direito Tributário, São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020.

[3] PwC e Banco Mundial. Paying Taxes 2020. Disponível em:<https://www.pwc.com/gx/en/services/tax/publications/paying-taxes-2020.html>. Acesso em 23.03.2021.

[4] FIESP. O peso da burocracia tributária na indústria de transformação. Departamento de Competitividade e Tecnologia, março de 2019. Disponível em http://joserobertoafonso.com.br/attachment/197773. Acesso em 23.03.2021.

Fonte: JOTA e Lacaz Martins, Pereira Neto, Gurevich & Schoueri Advogados