Por Alexandre Teixeira Jorge e Matheus Martins Alves
O texto da reforma tributária aprovado na Câmara dos Deputados (PEC nº 45/2019) extingue o IPI, PIS, Cofins, ICMS e ISS em prol da instituição da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e do Imposto Seletivo (IS), com o objetivo de promover a simplificação da tributação sobre o consumo.
O pressuposto da reforma é que a CBS e o IBS tenham uma alíquota única, ressalvada a possibilidade de fixação, em alguns casos, de uma redução de 60% ou 100% (ou isenção); e que o IS incida sobre a produção, comercialização ou importação de determinados bens e serviços, tidos como prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente, nos termos da lei que o instituirá, sem limitações quanto ao número de alíquotas.
Diante disso, é da maior relevância debater o impacto desse projeto de reforma sob a ótica da classificação fiscal de mercadorias. Isso porque a proposta em debate carrega uma certa ambivalência em torno da questão. De um lado, ela tem o potencial de reduzir significativamente o contencioso relativo ao tema, especialmente em relação ao IPI (que seria extinto). Por outro lado, ela pode ensejar novas discussões em relação aos bens sujeitos às alíquotas reduzidas da CBS e do IBS, ou sujeitos à incidência do IS.
Ademais, diversas discussões hoje existentes sobre as operações de importação e, em menor grau, de exportação, permanecerão.
A classificação fiscal de mercadoria é baseada no Sistema Harmonizado de Designação e de Codificação de Mercadorias (SH). Trata-se de um sistema composto por seis dígitos, que segrega os produtos com base em suas características, composição, destinação, seguindo uma ordem numérica crescente de participação humana na criação do bem — indo do produto menos para o mais sofisticado — que é atualizada a cada cinco anos pela Organização Mundial das Aduanas (OMA).
Esse sistema é base para a Nomenclatura Comum do Mercosul (NCM), utilizada no bloco para questões relacionadas ao comércio exterior, e para a Tabela de Incidência do Imposto sobre Produtos Industrializados (Tipi), ambas compostas por 8 dígitos, dos quais os 6 primeiros correspondem à codificação do Sistema Harmonizado.
Diante do iminente fim do IPI, e, por consequência, da Tipi e de suas múltiplas alíquotas, é de se esperar que a simplificação prometida pela reforma atenue as discussões de classificação fiscal.
Ao prever a fixação de uma alíquota de referência para o IVA dual, ainda que com algumas exceções, a reforma poderá reduzir o contencioso administrativo e judicial em relação às controvérsias de classificação e consequente diferença de tributos, com o desincentivo a planejamentos tributários visando a reclassificação de um produto para um código que traga uma alíquota reduzida.
Um clássico exemplo é o de um chocolate, cuja alíquota de IPI era de 5% por ser considerado bombom, mas que, após sua reclassificação para wafer, passou a ser zero. Aqui, vale o destaque de que a mudança de classificação não depende unicamente da embalagem ou do nome comercial dado ao produto, sendo imprescindível a alteração de sua composição. Com a redução a zero do IPI a partir de 2027, esse planejamento tributário sequer seria necessário, já que não traria vantagens fiscais.
Por outro lado, a previsão de redução da alíquota do IBS e da CBS para dispositivos médicos, medicamentos, produtos agropecuários, pesqueiros, florestais e extrativistas vegetais in natura, insumos agropecuários, alimentos destinados ao consumo humano e produtos de higiene pessoal poderá atrair novos litígios.
Isso porque é provável que a legislação infraconstitucional traga taxativamente as NCMs que estarão sujeitas à alíquota reduzida, com o potencial de discussão do enquadramento de determinados produtos para fins de aproveitamento da menor carga tributária.
Tome-se, mais uma vez como exemplo, a controvérsia já analisada pelo Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) sobre a classificação do produto conhecido como “leite de rosas”. Naquela oportunidade, a Receita Federal defendia que o produto era uma loção embelezadora, enquanto o contribuinte o enquadrava como desodorante, cuja NCM é diferente. A partir da análise da composição do produto, que continha um antisséptico inibidor do crescimento de bactérias e fungos, o Carf entendeu que essa era a característica essencial do leite de rosas, o que denotaria sua natureza de desodorante, embora também possuísse propriedades destinadas ao cuidado da pele.
Trazendo essa discussão para o contexto da reforma, é possível que produtos desse tipo, uma vez classificados como desodorante, sejam enquadrados como um produto de higiene pessoal, com uma menor carga tributária.
Não bastasse isso, o IS também poderá gerar controvérsias.
O tributo integrará a base de cálculo do IBS e da CBS, sendo que o formato atual da redação do dispositivo não sinaliza se sua alíquota será única ou específica para cada produto. Aqui, também é provável que a legislação traga um rol taxativo de quais bens estarão sujeitos à incidência do imposto (e, conforme o caso, a sua respectiva alíquota), tomando como base a sua classificação fiscal.
Imagine-se, por exemplo, que a NCM referente às armas esteja sujeita à incidência desse imposto. Contudo, discute-se judicialmente se “granadas de efeito moral” — artefatos de tecnologia não letal — devem ser classificadas como artigos de pirotecnia ou em NCM relativa a bombas e granadas. No primeiro caso, estariam fora da incidência do imposto, ao passo que, se consideradas como armas, poderiam estar dentro do campo de incidência do imposto.
Além dos desafios acima, a classificação fiscal continuará sendo objeto de controvérsias específicas nas operações de comércio exterior.
A um, porque a NCM continuará relevante para a determinação da alíquota do Imposto de Importação (II), não abrangido pela PEC nº 45/2019, e que ainda traz inúmeras alíquotas diferentes para as mercadorias existentes. Assim, litígios relacionados à classificação fiscal e à consequente diferença de II ainda representarão grande parcela do contencioso aduaneiro.
Destaque-se que as alíquotas do Imposto de Importação são baseadas na Tarifa Externa Comum do Mercosul (TEC) e, assim como a NCM, dependem de negociações internacionais para sua modificação, de modo que a PEC nº 45/2019 sequer poderia ser o instrumento adequado para regular eventual simplificação.
A dois, porque as exigências decorrentes de reclassificações fiscais de mercadorias não se restringem à diferença de tributos entre um produto e outro, atendendo também ao controle aduaneiro.
A correta classificação nas operações de comércio exterior é relevante para fins regulatórios, determinando, por exemplo, a exigência de anuência de órgãos como Anvisa, Ibama, Inmetro e Exército para a importação ou exportação de determinados produtos. Tal aspecto é imprescindível para o controle sanitário, ambiental e de segurança dos bens em circulação no país e não pode ser simplificado por meio de um tratamento único a todas as mercadorias importadas ou exportadas.
Hoje, o mero erro de classificação enseja a cobrança da multa de 1% sobre o valor aduaneiro da mercadoria por declaração inexata, independentemente da existência de tributos ou de impactos sobre licenças de importação, ainda que se conteste se tal penalidade não deveria ser aplicada apenas em casos de erros reiterados ou de intenção fraudulenta.
Por fim, e considerando que a PEC nº 45/2019 prevê a manutenção de regimes aduaneiros especiais, a classificação fiscal poderá continuar sendo relevante para a utilização ou descaracterização de alguns regimes específicos (caso, por exemplo, do Repetro-Sped).
A PEC nº 45/2019 traz alterações significativas e tem como pedra de toque a simplificação e uniformização da tributação sobre o consumo. Ainda assim, as controvérsias de classificação fiscal continuarão presentes no contencioso, sobretudo porque as exigências fiscais nascem de divergências relacionadas ao enquadramento da mercadoria — e isso provavelmente não deixará de existir nem mesmo no sistema tributário mais simplificado.
Escritório Aliado: Bichara Advogados para ConJur