Por Onofre Alves Batista Junior, Paulo Roberto Coimbra e Marianne Dolher Souza Baker Rodrigues
Depois de passada parcela considerável do ano de 2020 em reclusão coletiva, as necessidades impuseram a muitos o retorno às atividades presenciais. Outros retornaram à “vida normal”, motivados pelo negacionismo ou por já terem se aborrecido com a conjuntura pandêmica e as suas inconveniências.
Independentemente das razões de flexibilização dos protocolos, é fato que a solução para a doença ainda não chegou. Mesmo que, passados tantos meses, já tenhamos nos conformado com a situação, os riscos de contaminação não deixaram de existir. Pelo contrário, a pandemia da Covid-19 ainda é real e os indicadores de contágio mais recentes são motivo de preocupação. O certo é que o vírus mata pessoas: físicas e jurídicas.
A grande maioria das empresas enfrenta as consequências da queda de receitas enquanto busca se reinventar para atender às novas necessidades do mercado. Ao mesmo tempo que se esforçam para retomar a produtividade, os empregadores continuam a ter de lidar com os frequentes afastamentos de seus colaboradores em razão de contaminação pela Covid-19 e com todos os ônus deles decorrentes. A Receita Federal (RFB), entretanto, parece alheia a essa realidade (em uma espécie de negacionismo administrativo).
Como de costume, firmou interpretação restritiva e adotou entendimento apático à situação dos contribuintes. Há alguns meses, foi retirada do e-Social a possibilidade de se deduzir do montante devido a título de contribuições previdenciárias os valores pagos aos empregados afastados em decorrência de contaminação pela Covid-19.
Em 2 de abril deste ano, essa possibilidade de dedução foi concedida por meio do artigo 5º da Lei 13.982/2020, limitada ao valor máximo do salário de contribuição do Regime Geral da Previdência Social (atualmente correspondente a R$ 6.101,06). A autorização para essa dedução se refere ao valor que cabe à empresa pagar aos empregados em relação aos 15 primeiros dias de afastamento. A partir do 16º dia de distanciamento do trabalho, a Previdência Social arca com os custos do auxílio-doença, como determina o artigo 60 da Lei 8.213/1991.
Pela necessidade de bem compreender o texto da lei, transcrevemos:
“Artigo 5º — A empresa poderá deduzir do repasse das contribuições à previdência social, observado o limite máximo do salário de contribuição ao RGPS, o valor devido, nos termos do § 3º do art. 60 da Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991, ao segurado empregado cuja incapacidade temporária para o trabalho seja comprovadamente decorrente de sua contaminação pelo coronavírus (Covid-19).
Artigo 6º — O período de 3 (três) meses de que trata o caput dos artigos 2º, 3º, 4º e 5º poderá ser prorrogado por ato do Poder Executivo durante o período de enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional da Covid-19, definida pela Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020″.
A RFB argumenta que o artigo 6º da Lei 13.982/2020 prevê prazo de três meses para a dedução, a contar da publicação da lei. Como a possibilidade de prorrogação desse período não foi formalmente efetivada, o entendimento da RFB é de que acabou em julho a autorização para dedução das contribuições previdenciárias.
Entretanto, ao contrário dos artigos 2º, 3º e 4º, o artigo 5º (que previu a dedução) não estipulou prazo máximo para o benefício. Se, de fato, houvesse intenção de delimitação do subsídio ao prazo de três meses, essa deveria ter sido expressa, como foi nos artigos 2º, 3º e 4º da lei. Como não há delimitação explícita de prazo no caput do artigo 5º, não pode a RFB presumi-la. Ao referir-se ao prazo de três meses “de que trata o caput dos artigos”, o artigo 6º especifica o seu objeto, para indicar a possibilidade de prorrogação do prazo. Inexistindo prazo fixado a ser prorrogado, quanto ao artigo 5º, a interpretação do artigo 6º, necessariamente, há de ser outra.
O artigo 6º faz referência ao prazo (determinado) de três meses nas hipóteses nas quais ele foi fixado (artigo 2º, 3º, 4º); onde esse prazo não foi firmado, como no artigo 5º, o entendimento só pode ser diverso. Nesse caso (artigo 5º), o prazo estabelecido deve ser entendido como o tempo que durar a situação de calamidade sanitária, por razões óbvias. Nesse caso, a prorrogação, por certo, pode ser encarada como possível para além do “estado de calamidade” decretado, quando ainda ocorram doentes com Covid-19.
É preciso interpretar o dispositivo e, em homenagem ao aspecto teleológico da norma, que veio para conservar empregos e possibilitar a subsistência de empresas produtivas, cumpre garantir a possibilidade de dedução de repasses de contribuições previdenciárias enquanto o país estiver em “estado de calamidade sanitária” em razão da pandemia. A interpretação restritiva da RFB é arbitrária, sobretudo porque o artigo 5º não firmou qualquer limitação de prazo.
Não se prorroga (por decreto) prazo de benefício que veio sem prazo legal, salvo se a situação que lhe dá ensejo e ampara (“estado de calamidade”) houver encerrado. Nesse compasso, ato do Poder Executivo apenas pode prorrogar o benefício quando cessado o “estado de calamidade pública”, para possibilitar a dedução com doentes remanescentes.
Enquanto o país estiver em “estado de calamidade” em razão da pandemia, continua válida a possibilidade de abatimento do valor do salário do empregado contaminado pela Covid-19, durante os primeiros 15 dias de afastamento. Afinal, o governo decretou oficialmente “estado de calamidade pública” (mensagem nº 93 do presidente da República, publicada no DOU de 18 de março de 2020), que foi confirmada pelo Senado Federal, no dia 20 de março, por meio do Decreto Legislativo nº 6 de 2020. O “estado de calamidade” não é uma situação de desconforto passível de ser aferida e verificada pela RFB, mas uma “situação de legalidade excepcional” determinada por normas jurídicas específicas dotadas de força de lei.
Ademais, a pandemia (situação legalmente reconhecida) proporciona efeitos reflexos para a economia, que merecem ser respeitados pela RFB. É consabido que diversos empregados estarão em quarentena ou afastados, doentes, em razão da contaminação pela maléfica doença. Como poderão as empresas pagarem os salários por meses, com a redução abrupta e significativa da atividade econômica e com seus negócios afetados drasticamente? É por isso que a intervenção estatal e a instituição de subsídios é inevitável e, sobretudo, traduzem um dever do Estado, que deve evitar o colapso da economia, o desemprego e a miséria. É evidente que a lei determina um pacote de medidas para o enfrentamento dos efeitos da pandemia no intuito não só de suavizar os problemas relativos à saúde da população, mas também para atenuar as perdas da economia. E a RFB não pode contrariar o plano da lei.
A propósito, mesmo que se queira entender que o benefício deve ser limitado a três meses, a leitura mais adequada do artigo 6º da Lei 13.982/2020 é a de que o prazo para a dedução em questão fica prorrogado enquanto durar o período de enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional da Covid-19, nos termos da Lei 13.979/2020 (que dispôs sobre as primeiras medidas de enfrentamento da pandemia).
A situação de emergência de saúde pública não acabou e não é o Fisco que vai resolvê-la.
O artigo 1º, §2º, da Lei 13.979/2020 expressa que “(a)to do Ministro de Estado da Saúde disporá sobre a duração da situação de emergência de saúde pública de que trata esta Lei”. A Portaria 188/2020 do Ministério da Saúde declarou, em 4 de fevereiro, emergência em saúde pública de importância nacional, que ainda não foi revogada ou alterada. Essa é uma verificação que deve ser feita pelos órgãos técnicos de saúde e não pela RFB.
Não se admite que o artigo 6º da Lei 13.982/2020 seja interpretado como uma mera “possibilidade” (arbitrária) de prorrogação de prazo. No Direito público não se outorga poder no vácuo, apenas para que se possa empoderar o administrador público. O agente público só tem o poder que lhe é outorgado pelas leis e a lei apenas atribui poder para que a Administração atenda aos seus desígnios e proporcione o “melhor interesse público possível”. A lei, nesse caso, visou a dar solução aos efeitos reflexos causados pela pandemia, que persistem. Por isso, a lei não se vale da expressão “poderá” como delegação de poder arbitrário. Na realidade, o “poderá” deve ser entendido como “deverá” ser prorrogado o prazo quando mantidas as mesmas condições que motivaram sua edição. E elas se mantém, como é ressabido.
A Lei 13.979/2020 estabeleceu que o enfrentamento à pandemia deve ser guiado “com base em evidências científicas e em análises sobre as informações estratégicas em saúde” (artigo 3º, §1º). Assim, considerando que a condução do estado de calamidade deve ser pautada por entendimentos técnicos, a interpretação sistemática mais adequada é de que a Lei 13.982/2020 não atribuiu ao Poder Executivo (muito menos à RFB) margem de arbitrariedade em relação à prorrogação das medidas previstas pela própria lei. Na verdade, foi-lhe concedida margem de discricionariedade técnica, sendo impositiva a prorrogação do prazo em sintonia com a duração do “estado de calamidade pública”.
Há muito é preciso que se entenda que margens aparentemente discricionárias, na verdade reclamam decisões técnicas mais eficientes (princípio da eficiência administrativa). Em outras palavras, em sintonia com a doutrina, como bem afirma o grande administrativista português Diogo Freitas do Amaral, “discricionariedade técnica” não é verdadeira discricionariedade.
A Lei 13.979/2020 bem previu que a disposição acerca da duração da situação de emergência de saúde pública cabe ao ministro de Estado da Saúde. Nada mais óbvio. Não se trata, portanto, de matéria que possa ser decidida pela RFB, que não está habilitada a decidir sobre questões de saúde. Nesse compasso, à luz de uma necessária interpretação sistemática, pode-se afirmar que a RFB não pode nem deve decidir administrativamente pelo término da possibilidade de desconto por parte dos empregadores. A legislação não autoriza que a decisão de prorrogação (ou não) do prazo dos benefícios seja arbitrariamente tomada, especialmente por um órgão que não é competente para tratar de saúde pública.
Apesar do aparente negacionismo (conveniente e imediatista) por parte da Receita Federal, o “estado de calamidade pública”, normativamente reconhecido, perdura. E, enquanto durar essa situação calamitosa, deve ser mantida a possibilidade de dedução dos valores pagos aos empregados durante os primeiros 15 dias de afastamento em razão de contaminação pela Covid-19.
Fonte: ConJur e Coimbra & Chaves Advogados