A CSLL dos agentes financeiros: o céu é o limite? | Coimbra & Chaves Advogados para JOTA

A partir de qual ponto os princípios da isonomia e da vedação do confisco limitariam efetivamente a voracidade fiscal?

Por Onofre Alves Batista Júnior e Paulo Roberto Coimbra Silva

Governo eleva capital da ABGF
Créditos: Revista Apólice, 2016

O pensamento mais corriqueiro e raso vai no sentido de que o aumento exponencial dos tributos dos bancos é medida de justiça, que pode, ainda, resolver os problemas de caixa da Nação. Entretanto, essa irrefletida afirmativa, que pode até seduzir os tribunais, pode conduzir a graves equívocos.

A União tem a competência para instituir a Contribuição da Seguridade Social sobre o Lucro (CSLL), nos termos do art. 195, I, “c” da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/1988). Como bem aponta José Eduardo Soares de Melo, o LUCRO pressupõe o ganho realizado em atividades econômicas, abatidas as despesas.[i]

Embora exista certa margem para qualificação do que seja LUCRO tributável no art. 195, I, “c”, da CRFB/1988, ao exercer sua competência, não pode a União determinar a tributação do que não constitua “acréscimo patrimonial” decorrente do exercício da atividade da empresa.[ii][iii]

A alíquota da CSLL é de 9% para as pessoas jurídicas em geral e, nos termos do art. 3º da Lei 7.689/1988, para as instituições financeiras, a alíquota é diferenciada. Em 2008, a CSLL das instituições financeiras, por meio da Lei 11.727/2008, foi elevada para 15%, o que deu ensejo à Ação Direta de Inconstitucionalidade da Confederação Nacional do Sistema Financeiro. Por sua vez, a Lei 13.169/2015 aumentou a alíquota da CSLL devida pelas instituições financeiras de 15% para 20%.

Recentemente, por meio da MPV nº 1.034, de 1º de março de 2021, promoveu-se nova elevação da alíquota, que foi para 25% sobre o lucro bancário. Ao emparelhar à alíquota do IRPJ, a tributação da União alcança o patamar de 50%! Indesviáveis as indagações: até que ponto seria essa tributação discriminatória juridicamente tolerável? A partir de qual ponto os princípios da isonomia (ainda que em graus de eficácia mais tênues) e da vedação do confisco limitariam efetivamente a voracidade fiscal?

Aparentemente, o tributo pensado tão somente decota parcela do lucro dos bancos, abastece o Erário e não gera efeitos reflexos na economia. Entretanto, agradando ou não, todos os tributos que incidem sobre a pessoa jurídica, em alguma medida, repercutem a carga tributária para o consumidor (no caso, para o tomador do dinheiro). Obviamente, para compensar o aumento na tributação, os bancos precisam repassar para seus clientes seus custos, razão pela qual o aumento acaba por propiciar maiores taxas de juros e spread. O custo do dinheiro tomado dos bancos, inevitavelmente, fica assim mais caro; empreender no Brasil, que já não é nada fácil, fica mais difícil. Os efeitos para a economia são nefastos.

Nos termos da Exposição de Motivos 41/2021 do Ministério da Economia, a MPV 1.034/2021 veiculou “medidas de compensação das renúncias de receitas decorrentes da edição do Decreto nº 10.638, de 1º de março de 2021”, que reduziu a zero, temporariamente, o valor da PIS/Pasep e da Cofins incidente sobre o óleo diesel e, em definitivo, sobre o Gás Liquefeito de Petróleo destinado ao uso doméstico em botijões de até 13 kg. Para tanto, o art. 1º eleva em 5%, durante o segundo semestre de 2021, a alíquota da CSLL incidente sobre as instituições financeiras e equiparadas.

A partir de 1º de janeiro de 2022, as alíquotas devem retornar ao patamar atual. Trocando em miúdos, o Governo aumentou a tributação das instituições financeiras para subsidiar a retirada do tributo incidente sobre os combustíveis. Foi para atender a interesses políticos, tentando evitar o clamor decorrente de uma possível greve dos caminhoneiros, que a Presidência da República empurrou a conta para o setor financeiro.

Nesse compasso, a alíquota da CSLL devida pelos bancos, nesse período, saiu de 20% e chegou ao escorchante percentual de 25%, enquanto a  alíquota aplicável às seguradoras (seguros privados); de capitalização; distribuidoras de valores mobiliários; corretoras de câmbio e de valores mobiliários; sociedades de crédito, financiamento e investimentos; sociedades de crédito imobiliário; administradoras de cartão de crédito; sociedades de arrendamento mercantil; cooperativas de crédito e das associações de poupança e empréstimo, saltou de 15% para o patamar de 20%. Apenas com a majoração temporária das alíquotas, o Governo espera um aumento na arrecadação de R$ 2,27 bilhões para o ano de 2021.

O produto da arrecadação da CSLL, nos exatos termos da CRFB/1988, deve se destinar, necessariamente, à Seguridade Social (saúde, previdência e assistência social). Entretanto, no caso em tela, o aumento da tributação das instituições financeiras foi usado para compensar a redução da tributação do diesel e do GLP. Em nota à imprensa, a Secretaria-Geral da Presidência informou a motivação subjacente a essas medidas e detalhou que as desonerações devem chegar a R$ 3,67 bilhões (em 2021), a R$922,06 milhões (em 2022) e a R$ 945,11 milhões (em 2023).

Um tributo finalístico, que deve, inarredavelmente, ser destinado à Seguridade Social, é usado, declaradamente, para financiar a redução do preço dos combustíveis (por motivações políticas). Trata-se de uma verdadeira FRAUDE À CONSTITUIÇÃO, uma vez que o Executivo utiliza um tributo cuja receita deve ser destinada exclusivamente à Seguridade Social para finalidade diversa (em clamoroso “desvio de finalidade”).

Toda essa manobra tributária é inconstitucional. Ocorre, no caso, aquilo que Manuel Atienza e Ruiz Manero chamam de “ilícitos atípicos”, que devem ser afastados pelo Judiciário (fraude à lei; abuso do direito; desvio de finalidade).[iv] O pior é que essa política de redução do preço dos combustíveis (por 2 meses) financiada com o dinheiro da Seguridade Social sequer deve estancar o processo, porque essa escalada depende, sobretudo, do preço do dólar e do barril de petróleo.

Com esse aumento de 2021, somando-se a CSLL ao IRPJ, as instituições financeiras passam a ter, aproximadamente, 50% de seus lucros arrecadados (confiscados). Se a esse montante forem somadas as contribuições incidentes sobre o faturamento, IOF e encargos sociais, a tributação, indubitavelmente, ultrapassa o intolerável limite do CONFISCO. Uma tributação que absorva mais de 50% dos lucros, indubitavelmente, torna a União uma espécie de “sócio indesejado” e majoritário do empreendimento, que, compulsoriamente, abocanha a maior parcela dos ganhos, sem compartilhar qualquer dos riscos inerentes à atividade. É patente a ofensa ao princípio do não confisco.

Esse princípio pode ser analisado isoladamente (considerando a incidência de um tributo sobre a propriedade, por exemplo) ou, numa abordagem conjuntural, considerar a carga tributária como um todo. Nessa segunda análise, todas as espécies tributárias de um determinado ente federado devem ser verificadas. Nesse sentido, afirma Hugo de Brito Machado[v] que o caráter confiscatório há de ser avaliado em função do sistema, ou seja, em relação à carga tributária resultante dos tributos em conjunto. Se o efeito confiscatório fosse examinado em face de cada tributo isoladamente considerado, o Poder Público poderia praticar o confisco mediante a instituição e cobrança de vários tributos, sem que nenhum deles, sozinho, pudesse ser tido como confiscatório.

O STF já considerou as múltiplas incidências tributárias tomadas em conjunto e proporcionadas pela mesma entidade estatal como aquelas que devam caracterizar o confisco da renda ou do patrimônio.[vi] Na ADI 4101/DF e na ADI 5.485/DF, julgadas pelo Pleno do STF, em 16/06/2020 (Rel. Min. Luiz Fux), ficou decidido que as alterações de alíquota da CSLL levadas a cabo pela Lei 11.727/2008 (que a elevou de 9% para 15%) e pela Lei 13.169/2015 (que as majorou de 15% para 17% e 20%) não eram inconstitucionais.

Para o Relator, “o Sistema Tributário Nacional considera natural que as instituições financeiras não se submetam às exigências tributárias do setor produtivo”. Isso porque entende que o “produto”, por excelência, gerado pelas empresas do segmento financeiro é o spread, assim entendido, como a diferença entre o custo de captação e o preço cobrado para a oferta de crédito.

O lucro desse segmento econômico, para o Ministro, refletido nessa diferença, é o objeto natural da exigência tributária. Assim, na expressão que se tira da decisão do Relator, “tributar de maneira diferenciada o lucro do segmento financeiro nada mais é do que escolher o signo representativo daquele segmento econômico para ser objeto de incidência da tributação”. Nesse compasso, firmou a Corte que a tributação mais elevada não configura ofensa ao princípio da isonomia.[vii]

Da mesma forma, a decisão entendeu que a eficiência alocativa da tributação do lucro de uma instituição financeira deve ser “calibrada de maneira a que não seja irrisória”, sob o pressuposto equivocado de que o sistema bancário brasileiro conta com uma demanda por crédito para consumo razoável e inelástica, imune à calibragem mais pesada na tributação.

O STF entendeu que os aumentos na tributação promovidos pelas normas de 2008 e 2015 não afetavam de maneira determinante a contratação de operações de crédito no país. Para o Relator, em uma análise economicista (e não jurídica), a tributação mais onerosa não provoca mudança de comportamento nas atividades das instituições financeiras. À luz desse raciocínio, desproveu a ação que questionava a constitucionalidade da alteração havida no regime de tributação da CSLL.

Os equívocos são patentes. Mais grave ainda é o fato de que o Executivo Federal, pretensamente ancorado nesses julgados, resolveu elevar mais ainda a carga tributária incidente sobre o setor. A União tomou a decisão da Corte Superior como verdadeiro “cheque em branco”, uma espécie de “salvo contudo” para majorar a tributação, deixando-a em patamares intoleráveis.

Como ressabido, esses aumentos na tributação dos bancos, sobretudo em momentos de severa crise econômica, oneram o custo do dinheiro tomado por aqueles que necessitam recorrer a empréstimos. Os efeitos econômicos, necessariamente, repercutem para aqueles que carecem de capacidade contributiva. A oneração dos bancos, assim, é discutível sob o ponto de vista econômico e criticável sob o ponto de vista constitucional.

Inquestionavelmente, todos os tributos que incidem sobre a pessoa jurídica, em alguma porção, terminam por repercutir no consumidor final, no caso, no tomador do dinheiro. Nesse sentido, exatamente aqueles que carecem de recursos e que não têm ability to pay é que acabam sendo onerados pelos tributos. Não é de se estranhar que o custo do dinheiro no país seja tão elevado. Quanto mais alto o custo do dinheiro, maior o risco de inadimplência, e impõe-se assim um círculo vicioso e nefasto. Posturas como essa tornam o empreender no Brasil horrivelmente custoso e arriscado. Nessa toada, é por isso que a nação enfrenta, há muito, um processo de desindustrialização permanente que vem jogando o setor produtivo no colapso.

Não é por outra razão que se pode afirmar que a ofensa ao princípio da capacidade econômica real, efetivamente apurada em “zona de certeza negativa”, é patente. Ninguém razoavelmente pode duvidar que o tomador de dinheiro acaba sendo onerado com a carga que desaba por sobre o segmento, portanto, pode-se inferir que a carga tributária acaba por ferir mortalmente aqueles que não tem capacidade contributiva. É evidente a ofensa ao princípio.

Se ofende a capacidade contributiva, a tributação acaba por afetar o patrimônio daqueles que têm a necessidade de recorrer ao mercado financeiro para obter recursos para seus investimentos ou para saldar suas dívidas.

É por isso que, por vias transversas, ocorre oneração do patrimônio, em uma verdadeira “socialização a frio” por meio de tributos. Cabal, portanto, a ofensa ao princípio do não confisco.

Em síntese, seja pelo ângulo que se pretenda observar, a MPV 1034/2021 ofende ao princípio da proporcionalidade, ao princípio da capacidade contributiva e ao princípio do não confisco. Como se não bastasse, faz uma verdadeira FRAUDE À CONSTITUIÇÃO motivada por razões puramente políticas e demagógicas, na medida que usa dinheiro da Seguridade Social para pagar o custo tributário da redução do preço dos combustíveis.

O Judiciário brasileiro não pode se quedar inerte diante dessas manobras que desmontam o Sistema Tributário. Por outro giro, é evidente que os aumentos de tributos sobre o setor já ensejam o confisco, inibindo a concessão de crédito, tão necessária nos dias atuais. A MPV 1.034/2021 merece ser rechaçada pelo Congresso Nacional,[viii] senão, afastada pelo STF. Com o perdão da expressão, a norma faz gracejo com o confisco do chapéu alheio.

Fontes: JOTA e Coimbra & Chaves Advogados