Para além do home office, a pandemia de covid-19 tem impactado diretamente nas relações de trabalho e, mais de um ano depois do início da crise sanitária no país, a Justiça começou a dar as primeiras decisões nas milhares de ações que chegaram às varas trabalhistas de todo o país.
De acordo com dados do Tribunal Superior do Trabalho (TST), foram registrados 30.543 processos tendo a covid-19 como assunto entre janeiro de 2020 a maio de 2021. Os casos listados nos primeiros meses do ano passado se explicam, segundo o tribunal, pela inclusão posterior à ação inicial do assunto “covid” pela defesa.
Logo no início dos primeiros casos da doença, em abril do ano passado, o Supremo Tribunal Federal (STF) definiu que a infecção pelo novo coronavírus deveria ser considerada doença ocupacional, ao derrubar um trecho de uma medida provisória editada pelo governo Jair Bolsonaro para flexibilizar as regras trabalhistas em meio à pandemia.
Apesar de a corte ainda não ter julgado nenhum caso concreto com repercussão geral sobre o assunto, a orientação já começou a ser adotada por juízes da primeira instância, contribuindo para a formação de um jurisprudência que ainda deve ser objeto de análise dos tribunais superiores no futuro.
O ponto central que tem sido analisado pelos magistrados é se há indícios de que o empregado foi contaminado enquanto trabalhava e quais medidas de segurança foram adotadas pela empresa para impedir a disseminação do vírus, já que é praticamente impossível saber onde, de fato, uma pessoa se contaminou.
De qualquer maneira, o entendimento sinalizado durante o julgamento do STF é que o ônus de comprovar que a doença não foi adquirida no ambiente de trabalho deve ser do empregador.
Recentemente, a 1ª Vara do Trabalho de Ouro Preto (Minas Gerais) determinou o pagamento de uma indenização de R$ 200 mil a uma confeiteira que pegou covid-19 enquanto trabalhava em um navio de cruzeiro em março do ano passado.
Ela alegou que foi dispensada do trabalho enquanto se recuperava da doença e que por causa das sequelas (houve perda de olfato e paladar prolongada) teve dificuldades em se recolocar no mercado profissional.
No entendimento da juíza Graça Maria Borges de Freitas, a funcionária ficou desamparada em “momento de vulnerabilidade” e não teve suporte para recuperar a sua “capacidade laborativa”. O caso foi classificado como acidente de trabalho, pois, para a magistrada, é “indiscutível” que a cozinheira contraiu a doença a bordo do navio.
Em outro caso em que a covid-19 foi considerada acidente de trabalho, a Vara do Trabalho de Três Corações (também de Minas Gerais) determinou o pagamento de uma pensão à família de um motorista de uma transportadora que morreu em decorrência da doença.
Na segunda instância, o Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (São Paulo) também confirmou sentença que reconheceu a covid-19 como doença ocupacional. A decisão foi dada em ação civil pública movida contra os Correios.
A Justiça também tem enfrentado casos de funcionários demitidos devido à pandemia. No Rio de Janeiro, uma fábrica de alimentos foi condenada a indenizar um trabalhador idoso dispensado por se enquadrar no grupo de risco da covid-19.
De acordo com a sentença, em março de 2020, o promotor de vendas, por ter mais de 60 anos, foi afastado das suas funções e orientado a ficar em casa. Três meses depois, porém, ele e outras pessoas foram demitidas e tiveram os planos de saúde cortados.
Para a juíza do Trabalho Bianca da Rocha Dalla Vedova, da 74ª Vara do Trabalho do Rio de Janeiro, houve dispensa discriminatória do empregado.
Na decisão, ela ressaltou que, apesar da crise sanitária, a empresa apresentou um crescimento de 140,8% em seu lucro líquido no primeiro trimestre de 2020 e ainda anunciou a contratação de 500 vagas temporárias.
A procuradora Márcia Kamei López Aliaga, do Ministério Público do Trabalho, afirma que, devido à natureza da doença, a covid-19 tem de ser encarada como um problema de saúde coletiva e as empresas precisam adotar protocolos para minimizar os riscos dos trabalhadores.
“O ambiente do trabalho é muito propício para proliferação do vírus. As pessoas ficam no mesmo ambiente por oito horas, às vezes mais. A empresa que acaba sendo negligente pode ter mais possibilidade de condenação”, diz a procuradora.
Ela, no entanto, aponta que essa é uma jurisprudência que ainda está se formando, já que não houve nem tempo para que ações chegassem aos tribunais superiores. “Acho que ainda vai demorar um pouco para a jurisprudência se consolidar.”
Márcia alerta ainda para outra faceta da doença – as sequelas deixadas no longo prazo-, que pode fazer como que novas ações cheguem à Justiça. “Esse fato e a falta de cobertura assistencial, previdenciária acabam motivando as pessoas a buscarem os seus direitos na Justiça.”
Ela também aponta que o próprio Ministério Público do Trabalho entrou com ações civis públicas para garantir os direitos de trabalhadores de categorias mais expostas, como da área de saúde.
Já o advogado Jorge Matsumoto, sócio trabalhista do Bichara Advogados, conta que muitas empresas não têm respeitado a cláusula de estabilidade prevista pelas medidas provisórias que permitiam a redução da jornada de trabalho e que, por isso, empregados têm entrado com ações em busca de indenização.
Sobre a jurisprudência, ele afirma que o Supremo se posicionou no sentido de deixar claro que a responsabilidade do empregador é objetiva para os casos de saúde. “Há uma obrigação constitucional do empregador em garantir a integridade física do empregado em tempos de pandemia”, diz.
O presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), Luiz Antonio Colussi, avalia que a pandemia trouxe para o Brasil uma legislação trabalhista emergencial, o que fez como que novas demandas surgissem, exigindo a pronta atuação dos juízes da área. De acordo com ele, “as decisões trabalhistas decorrentes dessas novas demandas têm por finalidade a solução dos litígios de forma justa”.
Colussi afirma ainda que, nesse período, se observou o aumento nas ações que questionam o teletrabalho e que envolvem a saúde mental dos trabalhadores.
Fonte: Bichara Advogados para Valor Econômico